sexta-feira, 15 de junho de 2012

A MÚSICA

Havia sido difícil; mais um dia de sol escaldante. O chapéu de palha, velho, ainda servia para alguma proteção. O sal desce pelo rosto; o homem parece uma máquina, repete várias vezes o movimento com sua enxada. Um apito se ouve, comandado pelo estômago; larga-a e caminha cabisbaixo até a mangueira. Ao sentar, sua expressão de dor é nítida; da boina retira uma marmita; num gesto de oração agradece o que tem nas mãos. Colheradas rápidas lhe enchem a boca, não pode deixá-la vazia, o esforço é maior por que poucas lhes são as moedoras.

Acabou, guarda sua companheira, gruda ao corpo, retorna ao sol, já saudoso da mangueira. Conecta-se  ao trabalho, braçal; o vento refresca e suja, sua junção com a poeira é hábil e laboriosa, tal qual o cenário. O astro rei se despede, é hora de regressar; anda por quarenta minutos e avista o aconchego. Banha-se, troca algumas palavras com a esposa. Sempre calmo, ouve mais do que fala. Após uma deliciosa galinhada, liga o rádio de pilha, ouve uma música que poeticamente fala do sol, da lua, do brilho das estrelas no chão; sente um nó na garganta, uma enorme vontade de chorar. O sal mina, percorre o caminho na face, o tempero lhe desce pra preservar o natural, sua essência humana.

domingo, 10 de junho de 2012

AOS GODOY, BONANÇA!

É manhã em São José do Rio Preto, Leilane volta a sorrir. Seus olhos estão radiantes, sua alma, sua essência está completa. Marcos, o marido carinhoso, compartilha a felicidade; estão dando total atenção ao momento. Ele olha sua amada, inspeciona, por fora parece a mesma, doce e eterna namorada; seus sentimentos estão naquela direção, ao âmago.

Ela transporta seus pensamentos meses à frente, observa a grande bola da vida, não acha difícil se produzir com uns quilinhos a mais. Godoy, em seu trabalho, entre um telefonema e outro, imagina o meninão, companheiro do pai; quando indagado, nega tal intenção, menina será muito bem vinda, repara.

Sozinhos, fazem um churrasco; bendito feriado, os amigos estão longe e perto. Leilane passa as mãos no ventre, os dois se olham, sorriem: o que será que estão pensando? Coisas profundas, que só os genitores entendem, apreciam e cumpliciam.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

ONOMATOPÉIA NA CIDADE





 




 


 

PREFÁCIO

 


 

ONOMATOPÉIA NA CIDADE é uma obra peculiar, pois trata da surdez de um ponto de vista positivo, através dos olhos de uma pessoa surda. É compreensível que por causa do trauma há várias barreiras que devem ser derrubadas, e por meio da família Mói, muitos outros vão dar passos significativos no processo de desenvolvimento de seus filhos, independente da dificuldade. A certeza é que a vida pode ser mais feliz, se desenvolvermos uma atitude positiva.
Abraços

 

Marco Dias

 


 


 


 

Ofereço este livro a todas as pessoas que por algum motivo se acha deficiente, na esperança que este ajude a enfrentar a vida de uma maneira produtiva.

 

COPYRIGHT 2007 – TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

 


 


 


 


 

ONOMATOPÉIA NA CIDADE

 

O mês de setembro é surpreendente, não só pela chegada da primavera, mas no caso da família Mói, a esposa estava florescendo para dar a luz. Era a chegada de um novo membro tão esperado e amado. A família Mói era composta de Felipe, jovem de 25 anos e Teresinha, de 27 anos. Felipe paulistano do Tatuapé, vindo de uma família de classe média alta. Sua mãe, Ercília Menezes Mói, advogada de prestígio na ativa; seu pai Maurício Goulart Mói, proprietário de uma rede de papelarias na cidade de São Paulo. Felipe sempre foi um pouco diferente do normal, segundo o que a sociedade julga como normalidade, pois não gostava de futebol, nunca havia namorado, era ávido em ler livros e ajudava seu Maurício em suas lojas. Tinha cabelos encaracolados pretos, moreno e franzino. Formou-se em analise de sistemas e passou na seleção de uma grande montadora da capital, que alguns meses depois o transferiu para o interior. Aos 25 anos conheceu Teresinha de Oliveira e Silva, formada em Letras.

 
Ela vinha de uma família de classe baixa da cidade de São José dos Campos, sua mãe Maria da Silva, do lar, seu pai Sebastião de Oliveira e Silva feirante que vendia frutas nas grandes feiras daquela cidade. Teresinha era ruiva como sua mãe e, cheinha tal qual seu pai.

 

 
O ENCONTRO

 

 

 
Felipe e Teresinha se conheceram numa livraria, ele procurando algumas informações de sua profissão e ela selecionando títulos de livros para seus alunos. O jovem moço encheu-se de denodo e foi em direção daquela mulher, perguntou se gostava de ler, Teresinha achou ousadia do rapaz que nunca antes encontrara, mas como a boa educação exigia uma resposta disse que sim, gostava muito de ler.

 
Felipe pediu desculpas por não ter se apresentado, pediu licença para sentar-se à mesa de leitura e foi explicando o que estava fazendo, sua mudança para cidade, falou sobre sua família e sua animação e sinceridade contagiou a jovem professora que começou sem perceber a abrir sua vida para Felipe. Quando caiu em si, tentou se resguardar, mas já era tarde, o lindo rapaz havia roubado seu coração. Muitos outros encontros aconteceram na livraria; com o tempo nas lanchonetes, restaurantes, cinemas, teatros, praças e sorveterias. Como todo bom namoro que se preze, Felipe foi conhecer a família de Teresinha, conheceu seu simpaticíssimo pai, seu Sebastião, conversante e carismático, daquelas pessoas que você se apega quando conhece. Dona Maria vergonhosa, uma pessoa simples que vive para a felicidade de sua família, seu respeito para com o marido é notável, meiga até nas horas de corrigir seu amado. Depois de conhecer os genitores de sua amada, combinou com ela sua ida até a capital para conhecer seus pais. Ele sabia que seria diferente; pois os costumes de sua família sobrevieram à mente, mas teve certeza que não seria problema para eles.

 
Os pais de Teresinha apreciaram o jovem enamorado de sua filha, após sua saída enumeraram suas qualidades e a conversa seguiu assim: - Oia veia, o rapaz é bom e tá apaixonada pela Inha.
-Tiáo, o moço é de família rica, num sei si da certo não.
- Esquenta não, nu zoio dele percebi amor sincero, nossa fia vai ser feliz.
-Deus queira meu veio, Deus abençoe.

 
Logo viajaram para São Paulo, Teresinha já estivera na cidade uma vez em visita a sua tia. Chegaram ao seu destino e dra Ercília e Maurício receberam-na cordiais e gentilmente, não seguiram as pompas da casa, visto que Felipe pedira. Nas conversas acharam a moça educada, sensível e culta, Teresinha muito natural ganhou os pais de Felipe. Na vinda para São Jose dos Campos, a moça elogiou muitos os pais do rapaz e ele se encheu de orgulho. Enquanto os pombinhos retornavam, os pais de Felipe conversavam sobre a pretendente, e na avaliação deles, Teresinha passou com nota altíssima. Dra Ercília declarou:

 
A moça tem muitas virtudes, claro que é perceptível que vem de uma família simples, mas é inteligente, ama o nosso filho, e trabalha. Gosto disto, mulher precisa ajudar o marido, ter sua vida profissional e não apenas ser à sombra de seu esposo.

 
Maurício o pai, deu o seu parecer:
Olha o que mais me preocupava era a inexperiência de nosso filho concernente a namoro. Mas o espertinho soube escolher, Teresinha é de boa índole e saberá respeitá-lo, assim como você me honra.

 

 

 
ENLAÇO MATRIMONIAL

 

 

 

 
Num dia de domingo como costumeiramente namoravam Felipe a pediu em casamento, Teresinha sem titubear aceitou prontamente.

 
Foi o namoro mais rápido e o casamento mais simples e cheio de amor que eu já vi. A lua de mel foi saboreada em Salvador, Bahia, em suas lindas praias que inspirava o jovem casal no seu leito de amor.
Decidiram morar naquela cidade interiorana do estado de São Paulo, mas não como talvez pense um lugar atrasado, não, um lugar bem moderno como cidade grande e, pacata como cidade do interior.

 
Com a chegada da primavera as flores enfeitavam as principais avenidas, prazeroso sentir as fragrâncias das orquídeas, dos lírios, das rosas e de outras flores que faziam a cidade mais bela. Que época agradável para chegada de um bebê especial!
Felipe gostava muito de ouvir músicas como mpb, de A a Z, de Adoniran Barbosa a Zizi Possi, músicas clássicas, curtia um pouco de rock. Sempre pontualmente as sete da manhã, saia com seu carro modelo popular e, ao seu lado estava Teresinha, professora de língua portuguesa e inglesa para ensino médio e fundamental. No caminho conversavam sobre suas responsabilidades do dia, contavam coisas engraçadas quer da montadora quer da escola, falavam sobre os familiares e claro sobre o filho encomendado. Ao chegar ao colégio, beijavam-se e com olhar, a confirmação do horário de encontro do jovem casal. Como jovens, em alguns aspectos faltavam lhes experiência de vida, mas eram bons observadores e aprendiam dos erros dos outros.

 

 
O FRUTO DO VENTRE

 

 

 
A jovem Terezinha, grávida, naquela semana estava de licença, correu para maternidade e deu entrada para o esperado parto. Sozinha assinou todos os formulários que fariam parte de seu prontuário e ligou para o esposo dizendo:

 
- Já estou na maternidade! Calma, está tudo bem! Disse a jovem serenamente.

 
O marido, Felipe, desesperado disse:

 
- Não saía daí! Já estou chegando.
Com seu bom humor, a jovem mãe respondeu que mesmo querendo não seria possível sair por causas das muitas contrações, riu e mandou um beijo, e em seguida um eu te amo ternamente.

 
Na enfermaria onde se encontrava, entrou sua ginecologista obstetra, Dra. Marli. Examinou-a com o cuidado e carinho de quem sabe a importância da calma, tranqüilidade para evitar complicações no parto. Usou seu estetoscópio, seu aparelho de pressão, observou que a bolsa já estava rompida. Disse:

 
- Querida Terezinha seguiu as recomendações?
- Claro Dra! Eu prezo a minha vida e a do meu filho.
- Muito bom! Chamou a enfermeira e pediu sua remoção para sala de parto e saiu.

 
A enfermeira acabara de separar seus pertences, colocou-a na maca e a transferiu para o segundo andar.
Meia hora depois chega Felipe todo esbaforido, perguntando:

 
- Minha esposa está bem? Seu suor descia pelo rosto preocupado. A atendente já acostumada com os genitores de primeira viagem, perguntou com um sorriso:
- Qual o nome da futura mamãe?
- Terezinha de Oliveira Mói.
- Está em trabalho de parto. Por favor, o Senhor Dirija-se ao elevador no segundo andar e pergunte a atendente. Não se preocupe ela está sendo bem cuidada.

 
Com ar de serenidade, Felipe entrou no elevador e foi imaginando a figura de seu filho, moreninho, cabelo encaracolado, chorando muito. Logo se lembrou das conversas recente com sua esposa, logicamente, o nome do filho. LUCAS.

 
Perguntou a Senhora que atendia no andar sobre sua esposa.
A Senhora Com um grande sorriso disse:

 
- Papai, o seu filho fofinho nasceu! Está com a mamãe na enfermaria quarto 213, segundo corredor à direita. Ah! Parabéns!

 
A cada passo o coração disparava, Felipe estava ansioso e ao entrar no quarto, viu Terezinha com Luquinhas acariciando-o.
Tocou lhe a mão, e chorou muitíssimo, como nunca antes havia chorado. Seu amor chegou ao clímax, e sua esposa ainda fraca, sorria e falava ao ouvido do bebê: Papai, papai chegou meu amor. Papai te ama, viu? É o pai mais lindo que eu já vi chorar.
Eram sós risos com lágrimas, a cena foi marcante!
Felipe falou a amada que precisava dar boas novas às famílias, compartilhar o momento feliz. Desceu pelo elevador, ainda trêmulo, saiu em direção ao telefone público e começou a anunciar a alegria do casal. Logo o hospital ficou cheio de familiares, os vovôs e vovós esbanjavam contentamento pelo privilégio que a vida até o momento lhes dera.

 
Dra.Marli, juntamente com a Dra.Suzana, pediatra, conversaram com os pais, explicaram que o menino era saudável. Aconselharam os cuidados devidos, chamaram as avós e pediram que ajudassem no possível. Foi dada alta, toda a papelada para registrar o bebê, e muitas felicidades a família.

 
Aquela semana foi um entra e sai na casa para visitar Luquinhas, o pai Felipe, orgulhosamente trocava fraldas e acordava de madrugada para embalá-lo. Teresinha, calma e se recuperando dava atenção aos familiares, amigos e colegas de trabalho, pensava nos quatros meses de licença maternidade e não imaginava separar-se do seu filho. Felipe aproveitava suas folgas para babar seu primogênito.

 
Os meses foram passando e Lucas se desenvolvia muito bem, tomou as vacinas próprias da idade, e já engatinhava, seu esforço aos oito meses era pra andar. Felipe o incentivava a andar, lia histórias para ele; sua mãe o estimulava a falar e a primeira coisa que falou foi mãe. Imaginem a alegria e em seguida a disputa para o menino repetir ou emitir som de papai. Lucas deu dias depois seus primeiros passos e ao aprender a andar, corria pela casa inteira, acontecia de cair e chorar, mas não desistir de correr.

 

 
UM DIA TRISTONHO

 

 

 
Felipe e Teresinha labutaram muito para seu amado filho ter suas necessidades atendidas, incluindo a disciplina, cortava os corações corrigir, mas o fim posterior era doce.
Lucas agora se encontra com três aninhos, falava muitas coisas, sempre perguntando, um menino comunicativo e feliz.
Em julho aconteceu algo inesperado, Lucas estava febril, e imóvel chorava, aquele choro que vem do fundo da alma. Sua mãe apressadamente levou-o a pediatra Dra Suzana, ele ficou internado, a suspeita de meningite, inflamação das meninges (as três membranas envolventes do aparelho cerebrospinal). Teresinha aflita liga para Felipe e, mais que depressa chega ao hospital para amparar seus amados. Cai à noite e Felipe pede para Teresinha ir pra casa, pois ele passaria a noite com Lucas. No quarto, Felipe canta algumas canções e depois conta algumas histórias que conhecia de cor. O menino reage, olha e sorri candidamente.

 
Dois dias de internação e Lucas estava de alta, só que com seqüelas, daí por diante estava surdo. Foi à segunda vez que seu pai chorou muito, muito mesmo, um choro sentido, da impotência de um pai que não podia fazer mais nada por seu filho, assim pensava Felipe. A Dra Suzana encaminhou o caso para psicóloga Dra Irene e fonoaudióloga Dra Maria Cybele, para orientação dos pais. Teresinha sofria calada o trauma de seu filho, pelo visto para não entristecê-lo.

 

 
VALORES REAVALIADOS
As idas na psicóloga ajudaram a superar o trauma, mostrar que dos males, este foi o menor, pois há casos que o paciente fica surdo-mudo, cego ou com alguma deficiência mental, e que Lucas estava vivo e existiam muitas pessoas na cidade que ficaram surdas por diferentes razões. Já com a fonoaudióloga, foi feitas sessões para desenvolver a fala, e aconselhou os pais aprenderem a língua de sinais. A Língua de Sinais é um idioma próprio da comunidade surda, é uma língua sofisticada para os olhos, rica e complexa, com regras gramaticais e com sua impiedade, se você não a conhece, não consegue entender quem está usando. E o curioso que não é universal, cada país, tem sua própria língua de sinais, é claro que a mímica é universal e qualquer pessoa entende como, por exemplo, levar a mão até a boca e querer comida, em qualquer lugar do mundo ou língua, será entendida.
Teresinha não gostava da idéia de seu filho comunicar-se com as mãos, seu medo era que seu filho deixasse de comunicar com a família, também, como os pais aprenderiam esta micagem, segundo seus pensamentos.

 
Ao conversar com Felipe, este disse que moveria céus e terra para que seu filho pudesse levar uma vida com menos dificuldade possível.

 
Lucas foi reaprendendo a emitir alguns sons, outros aprendia juntamente com seus pais a fazer com as mãos. Seus pais notavam que a cada vez que a comunicação ficava incompleta, ele se irritava. A agitação com gritos no inicio deixava os pais abalados e com o tempo, sabiam administrar melhor as situações variadas.

 
Sua mãe se esforçou até o último para vê-lo falar, ouvir, mas como não foi possível, aprendeu a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). A fonoaudióloga orientou-a na alfabetização por meio da escrita. Por exemplo, em sua casa em cada lugar, nos móveis, afixar por escrito o nome de cada coisa. Ao apontar para o objeto desejado, seguidamente sua identificação na LIBRAS. O menino foi progredindo, e junto com seus pais, aumentou seu vocabulário.

 

 
ONOMATOPÉIA

 

 

 
A conversa na casa passou a ser muita interessante pra quem nunca lidou com esta situação. Se Lucas tinha vontade de ir ao banheiro além de sinalizar com as mãos, ele emitia o som da descarga: Chuaaaaaaa. Se estivesse com fome, colocava as mãos sinalizando fome, e sonorizava: ronc. Quisesse dormir, fechava os olhos com as mãos no rosto, imitando alguém dormindo, se cansado sinalizava e depois escutava um ufa, ou quase isso. Com vontade de passear ele mostrava as roupas, sinalizava nos ombros o correspondente em sinais e balbucia: ham. Pra tudo, existe uma indicação na Língua de Sinais e o interessante que Lucas parecia conhecer o som das palavras, pois imitava seus sons.

 
Quando Felipe, Teresinha e ele passeavam, iam para o médico ou visitavam seus parentes, Lucas prestava atenção aos detalhes. Decorava o caminho, o ônibus, todos seus conhecidos ele designava um sinal que lembrava a pessoa citada. Se fosse o tio de um metro e noventa, ele levanta a mão até o alto, se fosse uma pessoa gorda ele com sua expressão corporal mostrava isso. Os pais sabiam tudo o que estava falando, sim, falando, pois aprenderam que a língua de sinais é uma língua e o mesmo lado que é acionado em qualquer idioma pelo cérebro em virtude da fala, com a língua de sinais é igual. E com os dias, ao prestarem atenção nele, era como se escutassem a sua fala, e tinham plena certeza de que ele os ouvia.

 

 
O IMPORTANTE É VIVER

 

 

 
O menino Lucas como todo menino brincava, fazia suas traquinagens e tinha amigos, um em especial era George, que morava na mesma rua e cresceram juntos. George ouvia e falava normalmente, mas diferente de outros meninos parecia saber quão difícil parecia ser a surdez.

 
George vivia com o seu pai, sua mãe havia falecido após seu nascimento por complicações no parto, e mais dois irmãos menores do que ele. George sempre ajudou seu pai na assistência a seus irmãos. Talvez pelas dificuldades fosse mais fácil usar de empatia no caso de Lucas.
Teresinha e Felipe gostavam de George, e sempre que compravam algum presente para seu filho, faziam questão de comprar para George e seus irmãos.

 
Lucas foi passando de criança para adolescência, e os problemas que acompanham a idade também floresciam. Achava-se diferente dos outros, às vezes seu emocional se abalava, sua alta estima estava em baixa e parecia ficar deprimido, isolava e não queria conversar. Teresinha como boa educadora que era se especializou em dar aulas para pessoas surdas, ajudava além de seu filho muitos outros, e parecia saber o porquê dos momentos tristes e alegres deles.

 
Alguns surdos são oralizados, o que se dava com Lucas, isso ajuda na sociabilização e inclusão deles como cidadãos.
Teresinha lidou com alunos surdos que nasceram assim, outros perderam a audição por rubéola, meningite, infecção no aparelho auditivo e a minoria por raios que caíram próximo as crianças.

 
Lucas começou a ter pena de si mesmo, foi então que seu pai usando a língua de sinais conversou particularmente com o jovem. Para não ser uma prosa formal, foram passear, avistando uma sorveteria, Felipe parou o carro, estacionou e saíram. A sorveteria era um ambiente ideal haja visto que Lucas amava sorvetes. Sentaram, o pai colocou sua mão sobre a mão de Lucas, e num movimento trouxe até o seu seio e disse pausadamente: Eu te amo. Continuou com as mãos indicando como poderia ajudá-lo.

 
Lucas pediu licença para escolher o sorvete, seu pai balançando a cabeça o liberou. Felipe pensativo notou que o problema mexia demais com seu filho, em sua longanimidade, levantou com um sorriso paterno e foi escolher seu sorvete. Lucas voltava à mesa com um banana split, e ao sentar se deliciou com aquela extraordinária massa gelada. Seu pai tomou um sundae e seu olho mesmo no balcão não se descuidava de fitar sua cria. Lucas como bom surdo era exímio observador e notara os olhares de seu genitor. O pai voltou à mesa saboreando a delícia gelada que escolhera e perguntou se a dele estava boa. Com a mão apertando o brinco da orelha, Lucas respondeu que estava daqui. Felipe contou algumas coisas engraçadas quando era criança, como o fato de aos sete anos ter levado carreira de um boi bravo no sítio de seu avô. Contou também, como era seu pai, o avô de Lucas, e como o amava, dizia que vovô Maurício foi muito bom pai, ajudou muito ele, e sempre que tinha problemas sentava com o velho que era só ouvidos e conselhos práticos. Lembrou da vez que os alunos do colégio o tentaram a namorar uma menina, ele era muito tímido, vergonhoso, não teve coragem, os meninos começaram a mexer comigo, sempre que me viam falavam que eu era gay.

 
– Naquele dia Lucas, papai voltou triste pra casa, mamãe percebeu e logo o velho Maurício veio em meu auxílio e antes que eu pudesse me expressar, ele falou justamente o que tinha me acontecido. Assim que ele acabou, eu me desmanchei no choro, abracei-o com muita força e ele disse que não tinha dúvidas de que eu era homem. E afirmou que pra ser um homem, eu não precisava provar para os garotos, e nem me desesperar em beijar a primeira moça. Falou que sabia que a adolescência tem uma fase muita confusa nos jovens, e ele passou por isso. Abraçou mais uma vez e me disse que me amava. Daí, eu abri meu coração pra ele, ele me aconselhou, e sempre que precisava de ajuda, eu o buscava, pois tinha certeza que só queria meu bem.
Lucas começou a chorar, esforçava em dizer algo, mas sua aflição o atrapalhava. Fui com minhas mãos fazendo menção de calma e passado alguns minutos ele foi se acalmando e voltou a explicar. Dizia que estava passando por um problema sério na escola. Desde que deixou de estudar na escola que sua mãe lecionava, alguns colegas pressionavam para experimentar drogas, fazer sexo com meninos e meninas, roubar. Mas ele dizia não, não achava certo. Mas todos os dias eles o pressionavam. Alguns o chutavam, até mesmo alguns surdos faziam isso.

 
Seu pai atentamente prestou atenção e o aconselhou a ser firme, lembrou de sua história como ele mesmo precisou ser firme com aqueles garotos. Não transgrida em sua moral, meu filho, disse o pai, e sempre que quiserem chegar as últimas conseqüências, você vai até a diretoria e ao chegar em casa me conta, pois iremos tomar as devidas providências. Aproveitou e mostrou o valor de Lucas como pessoa, o quanto ele havia ensinado a não desistir, os ajudou a aprender a língua de sinais, era um filho amoroso, dedicado e amigo. Filho eu te amo, com lágrimas falou Felipe. E como as cenas na vida vivem se repetindo, os dois se abraçaram e Lucas através da língua de sinais disse que o amava muito, e que tanto ele como a mãe eram os melhores pais do mundo.
Entraram no carro, Felipe notou que se passara três horas, pegou o celular ligou para Teresinha e falou que estavam chegando, era pra não se preocupar. Teresinha estava agitada de preocupação, e com o telefonema ficou mais despreocupada.

 
No caminho pra casa os dois notaram a lua cheia enfeitando o céu, e continuaram umas conversas gostosas, dessas que os pais tem com os filhos quando jogam conversa fora.
Ao chegarem em casa, Teresinha veio ao encontro e abraçou os dois, falou em sinais que os dois estavam ali, e ela apontava o dedo indicador ao coração. Naquele momento os três aprenderam que não importava o problema, o importante era viver!

 

 
ANOS DE REALIZAÇOES

 

 

 

 
Lucas foi atingindo a idade adulta e com ajuda de seus pais passou pelas melhores escolas profissionalizantes da cidade e, por escolha própria veio ser professor de língua de sinais.

 
Talvez você pergunte em que consiste esta profissão? Para a comunidade surda, um surdo (a) ajudando ou passando a matéria em sala de aula facilita o aprendizado.
Imaginem a realização de Lucas, após anos de dificuldades, depressão em virtude de sua deficiência física, força de vontade de não ser diferente, agora preparar aulas juntamente com os professores e ao entrar na sala, o professor começa passar a matéria e Lucas simultaneamente instrui os surdos.

 
A comunidade surda em sua cidade passa a respeitá-lo, e as pessoas em geral o admiram. Filipe não se descuide, embora o filho tenha 27 anos, ele sabe que toda a orientação é proveitosa para Lucas. Quando chega da montadora, Filipe e Teresinha tomam banho, jantam em família e depois, sentam com Lucas para ver o cronograma de ensino para o dia seguinte, sua mãe, experiente na área de educação, troca idéias em sinais com seu filho, e dá dicas de tornar o aprendizado mais atraente. Lucas vai dormir pensando em suas responsabilidades do dia vindouro.

 
Pontualmente as seis da manhã, Lucas levanta, executa as atividades da vida diária, seus pais acordam vinte minutos depois, e tomam café da manhã, ao saírem, entram no carro e Felipe faz o itinerário de primeiro desembarcar Lucas, depois Teresinha e finalmente até a montadora. Lucas já havia conversado que estava poupando dinheiro para comprar um carro, e estava se habilitando para tal desejo.

 
Na escola Lucas cumprimentava os alunos e nas conversas animadas, fortalecia os vínculos de amizade. Não era raro os alunos o presentearem, uma vez ao organizar um churrasco em sua casa, os alunos foram em peso, o que alegrou Lucas e seus pais, e o abraçaram, deram muitos presentes, e estranhamente não era data de nascimento dele, pois não comemorava. Mas o jovem rapaz sentia se realizado.

 

 
O NATURAL CICLO DA VIDA

 

 
Passado alguns anos, Lucas conhece uma moça de nome Vitória, que tinha sua mesma idade, e as coincidências não param por aí, ela também era surda, e trabalhava na linha de produção de uma conceituada fábrica da cidade.

 
Os dois se conheceram, e a vontade de se ver crescia, um não podia mais viver sem a presença do outro. Vitória levou Lucas para conhecer sua família, que diga se de passagem ficou encantada com o jovem rapaz. A recíproca também foi verdadeira no caso da família de Lucas.

 
Seu Felipe indagou de Lucas onde iria morar, estava querendo perceber as intenções de seu filho. Lucas mais que resolutamente com suas mãos e gestos firmes indicou sem nenhuma dúvida que escolhera aquela mulher e casaria com ela dentro de mais ou menos um ano. Quanto a comprar uma casa avisou seu pai que todo este tempo ele sabia que guardava seu salário na poupança e com esta quantia iria comprar uma casa que fica a dois quarteirões da de seus pais.

 
Filipe abraçou seu filho, com conselhos abalizados mostrou que era uma decisão muito séria, um passo importante que iria mudar sua vida, deixaria de ser solteiro, ou deixar de pensar nele mesmo para dar prioridade a sua metade.

 
Lucas entendeu e pela milésima vez perguntou ao seu pai como havia conhecido a mãe. Filipe com olhos brilhando
de amor por Teresinha contou que foi numa livraria que se conheceram... e cada palavra e mãos que sinalizavam o filho percebia o grande amor que ele tem por sua mãe. Lucas disse que o imitaria em seu casamento.

 
O telefone toca, era Dona Ercília mãe de Felipe dando tristonhamente uma notícia infeliz. Ao soar aos ouvidos de Felipe, ele começou a chorar como uma criança, era a terceira vez que ficava assim, mas desta vez parece que a vida tinha lhe nocauteado, seu pai, Maurício Goulart Mói, acabara de falecer no hospital israelita Albert Einstein. Felipe comunicou Teresinha que muito sentida ligou para seu trabalho pedindo dispensa por ela e Lucas, e a família.
Partiu para São Paulo via avião.

 
Dona Ercília aos setenta e dois anos, desamparada emocionalmente, chorava por seu amado esposo, dizia que o chão havia saído dos seus pés. Felipe providenciou certidão de óbito e todas as burocracias para o enterro. Teresinha não saia do lado de Dona Ercília, uma mulher esforçada que ajudou seu marido a construir uma rede de lojas de papelaria na cidade de São Paulo. Hoje advogada aposentada, dizia não ter forças para conduzir algo tão grande e trabalhoso. Felipe acalmou-a e falou que cada coisa tem a sua hora, e àquela hora era de tristeza e dor. Dona Ercília junto de Lucas não lhe soltava a mão. Virou-se a face para ele e com a boca disse: Ele te amava muito, deixou um presente a ti querido!

 
E no cemitério da consolação ali foi sepultado um homem que honrou sua família, foi um marido dedicado, pai amoroso, avô sem igual e sogro que tratou Terezinha como um pai. O corpo foi entrando no tumulo perpétuo e ao lacrarem a família sentia o coração despedaçado. Mas a vida é assim, há surpresas risonhas e tristonhas e de todas podemos aprender grandes lições. A família Mói aprendeu.

 
Na casa de Dona Ercília tinha um vazio, as conversas e lembranças refletiam seu Maurício. Passado alguns dias, Felipe e Dona Ercília conversaram sobre o destino das lojas e de Dona Ercília. Felipe conversou com a esposa e o filho, e precisavam decidir o que fariam. Disse a sua mãe que viajariam e que em breve dariam resposta. Voltaram para São José dos Campos, de alguma forma as coisas haviam mudado.

 
A família unanimente resolveu mudar para casa de Dona Ercília, Felipe estava aposentado fazia um mês, Teresinha já havia dado entrada em sua aposentadoria. Quanto a Lucas, ficou dividido não por causa do trabalho, mas de seu amor, Vitória, aquela moça inesquecível que mexeu com o seu coração. Foi conversar com ela e com seus pais, e na conversa ele resolveu marcar o casamento o qual deixou a jovem atônita de paixão. Mas disse que dentro de um mês estaria mudando para São Paulo e que junto com seu pai tomaria conta da rede de lojas. Vitória e seus genitores concordaram, mas antes ligaram para os pais de Lucas e confirmaram a história, não por desconfiarem, mas por serem limitados na Língua de Sinais. Assunto definido, Lucas foi para escola, pediu demissão e cumpriu um mês para escola ter tempo de recrutar outro profissional. Todos os alunos ficaram muito tristes, no seu último dia fizeram uma homenagem a ele, tanto os surdos quanto os ouvintes. Os professores deram uma carta a ele que dizia que o aprendizado de sua passagem pela escola, para eles o corpo docente da escola foi uma pós-graduação.
Seus pais que estavam na platéia mais uma vez orgulharam-se de seu querido filho. Lucas em sua simplicidade explanou o quão bem a escola tinha feito dentro dele, por sentir se útil e o mais importante, poder ajudar os alunos daquela forma. Agradeceu de todo o coração. Professores e alunos, aquela turba o abraçou e ele se perdeu entre os amorosos abraços. Vitória com olhos cheio de lágrima esperava-o, depois da despedida se dirigiu a ela e com as mãos falou que amanhã seria o grande dia, dia de seu enlace matrimonial.

 

 
UM PASSO IMPORTANTE

 

 
Casaram no cartório às nove horas da manhã, do dia 23 de abril, do ano de 1998. Os pais de Vitória abraçaram o noivo e a noiva desejando felicidades, os pais de Lucas choravam pela alegria de seu filho, e por ganharem uma filha. Ficou decidido que logo que pudessem, os pais da noiva os visitariam em Sampa.

 
Em Sampa, Tatuapé, Lucas começa a tomar conta de seis lojas, junto com sua mãe, Teresinha, e na região central, Felipe juntamente com sua mãe, cuidavam das outras seis lojas.
A moça Vitória dava apoio na loja em que Lucas estava atendendo e ficando no caixa, era muito eficiente, seu caixa não dava diferença. Como pode ver, as coisas mudaram, uniu a família e eles eram como um.

 
Dona Ercília viveu o resto de sua vida feliz, não deu muito importância ao dinheiro e suas as consecuções, tirou tempo para curtir sua família, seus filhos, seus netos, e agora um Vitória engravidou e deu a luz um jovem lindo de nome Maurício Felipe, em homenagem ao avô e bisavô (memória).
O bebê puxou os olhos da mãe e o jeito do pai, mas ouvia, não tinha surdez.
Lucas nesta altura da vida era só felicidade, ele viveu daí pra frente às alegrias e os problemas que são comuns aos humanos, sofreu perdas, dos avós, de seus pais, mas assim como aprendeu, sabia que na vida há tempo pra tudo. Edificou seu filho que ao crescer tomou conta das lojas competentemente. Claro que Maurício Felipe seguiu sua vida, casou, cuidou de seus pais e de sua vida. Ele lembrou como teve uma linda família, viu as dificuldades que às vezes abatia seus pais por causa da surdez. Mas sem se entregarem, vencia os problemas. Ele deixou que pessoas de confiança cuidassem das lojas sob a sua supervisão, pois ele e sua esposa se dedicaram a causa de pessoas surdas, construindo uma escola especializada para elas. Eles realmente aprenderam a ser felizes!

 
DEPOIMENTOS

 

 
Maurício Goulart Mói antes de seu falecimento, falou a respeito de seu neto, Lucas.
- Ele é uma pessoa muito especial, deu sentido e alegria para minha vida. Meu sonho é que ele tome conta das minhas lojas, sei que dará conta. Amo toda minha família.

 

 
Ercília Menezes Mói. (avó paterna)
- Meu neto Lucas, desde que nasceu me ensinou a encarar as diferenças como semelhanças, e que todos tem a capacidade de desenvolver, aprender e crescer. Depois dele, dediquei minha carreira advocatícia em prol dos indefesos.

 

 
Felipe Mói. (pai)

 

 
- Meu filho pra mim é a coisa mais preciosa que possuo. Quando teve a surdez, achei que o mundo tinha acabado. Mas com o esforço de minha esposa, entendemos o mundo que ele acabara de entrar, e não me arrependo de nenhum esforço. Foi peculiarmente encorajador aprender, entender uma nova língua, uma nova cultura e ver que tem potencial para o ser humano ser normal, igual. A diferença está na mente, nos olhos de quem a enxerga.

 

 
Teresinha Mói. (mãe)

 

 
- Lucas foi desejado, programado para vir a este mundo sem problemas, mas quem sou eu para por uma sebe nele e não passar por nenhum problemas. Eu sou impotente, mas não Deus. Ele ajudou meu filho a progredir, desenvolver, ensinar outros, a encarar seus problemas como problemas e não como fim de linha. Ele foi vitorioso, e acho que é por isso que se casou com Vitória. Amo vocês.

 

 
Sebastião de Oliveira e Silva. (avô materno)

 

 
- Lucas meu neto, sinto aqui dentro bater forte, seu avô estudou pouco fio, mas dentro do peito deseja tudo de bom procê. Beijos e abraços.

 

 

 
Maria e Silva. (avó materna)

 

 
- Não sei dizer muita coisa e não sou boa pra falar. Menino você não ouve, mas Deus te deu outros sentidos aperfeiçoados. Use para o bem. Vó te ama.

 

 
George. (amigo desde infância)

 

 
- Acho que nunca nos separamos, lembro quando crescemos e Lucas começou a trabalhar na escola, eu trabalhava como professor em outra, eu era professor de Língua Portuguesa, e tinha alguns alunos surdos que me lembravam muito ele. Nosso tempo ficou curto, por isso passamos a conversar por e-mails, sempre nos falávamos, ele disse que iria casar. Desejei toda felicidade e que a mudança para Sampa fosse bem sucedida. Sei que ele gostava muito de mim, mas eu gostava muito dele. Foi meu melhor amigo.

 

 
Vitória. (esposa)

 

 
- Como surdos, achei que não deveria casar com um que tivesse a mesma dificuldade que a minha, pois seria difícil e complicado em diversas situações. Mas Lucas me persuadiu e casei com ele. Não me arrependo, ele é meu melhor amigo, meu amor, minha vida, meu pai, ele me completa.

 

 
Maurício Felipe. (filho)

 

 
- Ele foi um pai diferente, quando precisava ele falava, enrolado, mas falava, he he (deu uma risada). Ensinou-me muitas coisas, lembro quando errava ele vinha sentar e com um sorriso esperava minha explicação. Após explicar o castigo vinha no devido grau, às vezes sem televisão, ler um livro inteiro e coisas deste tipo. Ajudou ver a vida com olhos impares. Pai valeu. Eu, minha esposa e seu neto te amamos, amamos muuuiiiito. Sei que falei isso quando ainda era vivo. Mas deixo registrado para todos saberem.

 

 

 

 
Fim.

O SOFÁ DE PANO VERDE







PREFÁCIO





Caro leitor,


Este livro foi editado pensando em como a vida toma com o passar dos anos outras proporções que nós mesmos ficamos surpreendidos. Do ponto de vista de um sofá, o autor narra os problemas, sentimentos de amor, alegria e tristeza, medo e coragem, gostos e desgostos num objeto inanimado, como se fosse humano.
O mais importante é a lição que se aprende da narrativa.
Espero que goste, um abraço de


Marco Dias.




Dedico este livro a três pessoas importantes em minha vida, minha mãe dona Lucy Brandão, meu irmão caçula Renato e pra minha esposa Elizabeth.


2007.Copyright.Todos direitos reservados.






O SOFÁ DE PANO VERDE





Era década de setenta, e sentia que minha estrutura iria terminar; alguns homens, sim, destes que trabalham em fábricas, uns barbudos e outros sem barbas, uns bem humorados e outros com falta de humor, estavam me montando, aquela estrutura de madeira aos poucos ganhava espuma, e um tecido sim, um pano verde, que faz qualquer um babar de inveja.

Lá saio eu pra dentro de um caminhão junto com outros sofás, estantes, mesas de centro, de cozinha, e outros móveis, todos estávamos alegres, e nos perguntávamos, qual seria o nosso futuro, qual casa iríamos decorar, que família seríamos de auxílio.
Lembro-me como se fosse hoje, o senhor guarda-roupa falando todo pomposo de seus atributos, e como seria de ajuda para a família que o levasse. A Cristaleira, fina e requintada dizia ser de nobre estirpe e que se desculpava por não ir conosco a mesma seção, pois os móveis de sua madeira se encontravam no andar superior ao nosso. Com estas palavras vários outros móveis entraram na discussão e no meio daquela confusão, eu estava apreensivo com o meu futuro.

O caminhão parou e meu coração bateu mais forte, dois homens uniformizados tiraram-me dali, e me colocaram num amplo salão com diversos sofás, estantes e objetos de decoração para sala, de estar e jantar.

As portas se abriram e começou a entrar muitas pessoas, percebi um menino de três anos mais ou menos perguntar a sua mãe: leva o tofá, o tofá mumito.
- Não querido mamãe veio pra pagar a prestação, vamos!

Uma senhora de cabelos brancos olhava para os sofás, tinha uma expressão de desapontamento, talvez por que não cabíamos no seu bolso.

Chegou a noite, as portas se fecharam, as luzes se apagaram, entre nós sofás houve uma conversa animada, cada qual apostando quem sairia primeiro da loja.
ZZZZZZZZZZZZZZ, muitos já dormiam, fiquei em silêncio, e o barulho ia diminuindo, diminuindo...

Despertei com um barulho, eram os empregados abrindo a loja, uns conversavam sobre o que fizeram ontem, outros sobre problemas familiares e outros contavam piadas. Na frente da loja, havia vendedor que não queria perder tempo e gritava: Oferta, oferta! Só hoje, móveis e eletrodomésticos pode entrar senhora, fique a vontade jovem!

E assim passou os dias, sofás marrons, azuis, estantes e objetos passavam por mim e diziam: Seja feliz! Eu respondia seja feliz, no começo com aquela empolgação e com os dias aquela tristeza de sentir-se desprezado.

Foi aí que entrou uma jovem senhora trajando roupas humildes, mas limpas, havia sinceridade no seu olhar, o seu tom de voz decidido, o vendedor percebia eu, queria empurrar um outro sofá mais em conta, que poderia fazer em tantas vezes. Mas a jovem senhora disse resolutamente: Este é meu! Anote o endereço. O vendedor cumpriu a burocracia de uma venda e garantiu que no prazo de dois dias receberia a mercadoria escolhida.

Fiquei tão contente de conhecer minha dona, e fiquei imaginando como seria sua casa, se tinham filhos, como era seu marido, será que tem cachorro? Aqueles atrevidos!Tentei não pensar mais em assuntos desagradáveis, pois sentia meu pano umedecer com urina de cachorro. Voltei a mente pra jovem senhora sincera, e digo foi a melhor noite que vivi naquela loja.

Ao raiar do dia, já estava ansioso pra conhecer a minha família, os carregadores me ergueram, meu pano brilhava com os raios do sol, era um brilho de alegria, satisfação e utilidade. Casa, aí vou eu! Pelo caminho acho que enjoei os outros móveis de tanto falar. Desejei felicidades a todos antes de desembarcar. Olhei, tinha uma escadaria que dava pra uma casa que ficava no meio da subida. Os carregadores arfavam com meu peso ao subir as escadas, um disse pro outro: E sofá de três lugares pesado sô!

Entraram pelo portão de madeira simples, quebrado, tinha uma varanda que fazia muito calor por ser coberta por telhas de zinco. Ao entrar na casa, pequena, passamos pela cozinha de chão de cimento, entramos na sala de chão de vermelhão, e de repente, alguns meninos, uma era menina, sentaram em mim. Eram franzinos, não pesavam muito. Eles expressavam surpresos: Olha! Puxa! Olha! E riam de contentamento.

Eles levantaram foram passar pano no chão, um aproveitou para se esticar em meu pano verde, e disse: Gostoso dormir aqui! Será que a mãe deixa? Falava pro outro.

Vi o que não queria ter visto, um cachorro grande vindo em minha direção, cheirando, logo pedi a Deus que colocasse ele pra fora. Minhas orações foram atendidas, por que um dos garotos colocou o cachorro pra fora, com o mesmo receio meu.

O tempo ia passando, e lá estava eu conversando com a velha estante fora de moda, ela sabia tudo sobre a família, quantos eram, quando e onde nasceram, do que viviam, fui me encantando por aquela família. A velha estante me contou também, os nomes de todos. Falou sobre onde foi fabricada, na cidade de Lion, França, e comovida dissera que há quase um século e meio serve seus donos. Dizia donos, pois, passara por casarões dos senhores do café, fazendas de pessoas importantes, passara de geração a geração, até que um dos herdeiros não conseguiu avaliar seu verdadeiro valor.

O interessante que a conversa não era uma queixa e sim, experiência de quem viveu por assim dizer, épocas dificultosas e favoráveis. Ela amava demais esta família, embora não tinham o requinte das outras, mas tinham uma coisa muito importante, prezavam o que tinham. Os móveis da casa, além da estante, eram o televisor antigo que tinha problema de gagueira, sempre que passava um programa ele começava a falar, e quando esquentava a gagueira era certa.

Muito simples, amigo, prestativo este televisor, conhecia assuntos diversos. Ele me contou o desenrolar da Primeira e Segunda Guerra Mundial, sobre a guerra do Vietnã, falou sobre costumes e culturas de diversos países, palestrou sobre política nacional e internacional, sobre a morte de Elis, do Iatola, da esperança de um Mundo melhor, do Apartheid, da queda do muro de Berlim, o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviética e dos lugares mais maravilhosos do mundo! Parecia mágica, era só ligar o fio dele na parede e a transformação, antes tímido passava por uma eloqüência esplendida, até seu aquecimento, porque daí pra frente já sabemos o que ocorria.

Também tinha uma velha geladeira azul, barulhenta por sinal, que sempre que o televisor gaguejava dizia: A ira não faz bem, olha o meu exemplo, não esquenta! Ela era muito legal, vivia mais no seu mundo, mas apaziguava as encrencas como ninguém, mas como nada é perfeito, ela era bem fria, não ligava muito pra família ou amigos.

O televisor chamou-me em particular e disse pra não ligar pra ela, pois achava que viera de algum campo de concentração.

O fogão vermelho era cheio de gás e sonhos, dizia que qualquer dia apareceria no televisor, famoso por cozinhar, fritar e assar de tudo, quem sabe naquele programa da época, Tv Mulher se não estou enganado. Não posso discordar de que o cheiro que emanava dele era pra sofá verde amarelar de tanta fome.

No quarto tinha uma cama e dois beliches, conversavam pouco, pois amavam dormir, suas raras conversas tinha que ver com histórias para dormir, como dormir faz bem, insônia e afins. Sempre que acabava o papo eu não percebia, pois, já pegava no sono.

A mãe, aquela mulher que admirei desde o primeiro contato, se chamava Adi, seu esposo chamava-se Carlos, seus três filhos, chamavam-se: Paulo, Alberto e Mariana. Cada um tinha uma personalidade única, o esperto era Paulo, o jogador de futebol e atleta era Alberto, e Mariana era doce e intelectual.

Fui me acostumando com a rotina da família, a mãe, levantava cedo e passava o café enquanto se arrumava para ir ao trabalho nas casas de famílias, pois era diarista. O seu Carlos estava encostado pelo seguro social, devido um acidente que lhe ocorreu no trabalho, e para continuar sobrevivendo, tinha uma banca de frutas na feira, ganhava pouco, mas fazer o quê, dizia aquele senhor de meia idade.

Quanto aos filhos, Paulo e Alberto com quatorze e treze anos de idade respectivamente, trabalhavam num banco na função de contínuos. Mariana, dez anos estudava e tinha prazer em arrumar a casa e cozinhar para ganhar os elogios de todos.

O que eu achava mais interessante nesta família era sua harmonia, união, claro como toda família tinham os seus problemas, mas parecia que a fé que tinham os ajudava a vencer, quer passasse carência de alimentos, financeira, enfim, continuavam unidos.

A noite quando todos estavam em casa, eu prestava atenção, a conversa era animada, ou acalorada dependendo do ânimo dos pais. Muitas noites, quando todos estavam em casa, o silêncio dominava por causa da tv. Mas dona Adi, pessoa simples, mas de uma inteligência que só as mães entendem, aos poucos fazia toda família se envolver numa conversa em que ninguém dominava, ou brincadeira em família, e sim era gostoso ver cada um falar do que aconteceu na escola, no trabalho, problemas com puberdade, e assim conseguiam perceber o que afetava os filhos, perceber suas reais necessidades. Quando todos iam para o quarto, ela e seu marido ficavam na sala, e aí meus ouvidos ficavam atentos a que soluções chegavam, o que cada um dos pais se comprometiam a fazer no dia seguinte para ajudar os filhos a resolverem seus problemas. Era notável escutar no escuro lá do quarto as histórias que o pai inventava para os filhos dormir. Às vezes eles demoravam pra dormir, pois achavam legal rir de algumas histórias engraçadas que o patriarca protagonizava.

Todo dia, eu e a estante velha dizíamos, agora é hora de levantarem, disso, daquilo, blá, blá e blá. Já conhecia rotina da casa.

Vi os filhos crescerem, suas primeiras namoradas, vi a preocupação da mãe, com uma atitude de esclarecimento mostrava para o filho apaixonado a realidade, responsabilidade e o que ele deveria fazer se realmente queria levar a sério. Claro que namoros viam e iam, alguns namoros eu podia perceber a agitação dos jovens, sentados em mim, disparava o coração de Paulo, às vezes as situações eram engraçadas, pois as jovens estavam sobre os olhos dos pais. E assim acontecia, Paulo, Alberto, e depois Mariana, pareciam que agora o namoro ia, aqueles sussurros nos ouvidos das amadas, durava pouco tempo, tempo de descobrirem que as pretendentes estavam se encontrando com outros. Aí, sozinhos na sala, um de cada vez é claro, faziam confidências de que nunca mais iam deixar se enganar, que o amor verdadeiro não existe, que as moças não valiam a pena. Logo lembrei da loja, e como me sentia triste, desapontado quando outros móveis iam para seus lares e eu ficava, sentia-me desprezado. Incrível, consegui usar de empatia, e parece que quando eu me colocava no lugar deles, eles se sentiam melhor, pois logo cochilavam em meu colo macio. Quantas vezes Mariana, conversando com a mãe deitava em mim, eu, assistia como um aprendiz faz, a mãe aconselhava, dizia não ter idade para namoros e o que realmente os garotos se interessavam. Mariana apreciava seus conselhos, era uma garota muito educada e obediente.

Aconteceu certa vez, um fato curioso, Paulo o primogênito, começou namorar uma moça, e na inexperiência juvenil, engravidou a mocinha. Paulo não queria o filho, não queria se casar com a moça achava cedo demais. Ficou perturbado com sua atitude. Dona Adi conversou e o aconselhou. Ele por conta própria, decidiu sumir, e ai começou a ira do pai da jovem. Ele foi até a casa da escadaria, e em sua cintura tinha uma arma de fogo, pelo menos pra quem via de longe como era o meu caso. Chamou por Paulo, Alberto e Mariana perceberam a arma que o homem carregava, nisto Dona Adi também percebeu, sutilmente, fez com que os filhos pedissem ajuda na vizinha, ela não sabia o que poderia acontecer. Disse ao pai da moça que Paulo não se encontrava, interrompida pelos seus gritos, dona Adi foi até o banheiro onde seu Carlos tomava banho e o avisou. Acredito que seu Carlos não entendeu a gravidade da situação e depois de uns quinze a vinte minutos saiu do banheiro. O senhor, irado, cuspia fogo, sacou de sua arma, e queria vingança. Neste meio tempo, os filhos conseguiram ajuda com a vizinha que rapidamente entrou em contato com a polícia. Trinta minutos cravado, desde que o pai da moça chegou, os policias cercaram a casa pelos quatro cantos, o senhor notou as sirenes, jogou o revolver longe. Os policiais naquele dito dia estavam à procura de ladrões de banco, e coitado daquele senhor, sentiu a bravura daqueles soldados, todos foram até a delegacia. Lá dona Adi descobriu que a arma era de plástico, pegou seu tamanco e quis acertar o insensato homem. A polícia deu um jeito nele, que nunca mais quis visitar a família de dona Adi. Paulo precisou aprender de seus erros que não se deve querer curtir a vida sem responsabilidades, ele não quis casar-se mais passou judicialmente a dar pensão ao seu filho. É lógico que tanto dona Adi quanto seu Carlos não se agradavam desta ação.Aos domingos, dona Adi saia cedo, voltava com os pães, leite e um jornal para que os filhos procurassem um emprego, e vencessem na vida.Mas um dia as coisas foram mudando, e a mudança foi me assustando. Eu conhecia o jeito de sentar de cada um, se estavam nervosos, calmos, animados e tristes. Claro que na grande maioria das vezes todos estavam bem, mas começou acontecer um clima tenso, uma nuvem escura começou a pairar sobre aquele lar.


TEMPO DE VENTANIA


Havia se passado uns quinze anos que estávamos juntos, o seu Carlos cidadão pacato, nascido no Paraná, começou a tratar mal sua esposa, xingava, bravejava, falava palavrões. Dona Adi, temperamento forte, passava por alto, queria conversar, e o dito marido se fechava mais e mais. Adi refletia na atitude de seu esposo, será que não gosta mais de mim? Será que engordei e não agrado mais? Será que tem outra?

Um dia aconteceu um fato diferente, dona Adi, lavava a casa, as roupas, Alberto e Mariana ajudavam a secar o chão e depois passar cera vermelha, na hora de lustrar, pegavam panos de chão, camisas velhas furadas por traças, um sentava em cima da camisa, o outro puxava, depois trocavam, o que era puxado, passava a puxar, e vice versa. Eles gostavam e se divertiam com estas coisas boas e gratuitas que a vida nos proporciona.

Bem, a casa estava limpa, o almoço embora simples, uma verdadeira delícia, com o tempero de Adi. Já passava das duas da tarde e seu Carlos chega da feira, seus filhos estão distantes dele, devido a sua rispidez e ignorância. Olhou para a mesa, ordenou a sua mulher que colocasse seu prato. Dona Adi respondeu que ele não era aleijado, a comida estava na mesa, era só servir. Exigiu em alta voz, sua esposa colocou sua refeição, deu pra ele, neste mesmo instante ele pegou o prato e jogou no chão, xingando que não era cachorro pra comer aquela lavagem. A tempestade tinha piorado, nos anos à frente, o respeito e o amor foi dando lugar a outros sentimentos que eu não gostava, como ódio, amargura e desinteresse. No decorrer deste tempo, os filhos cresciam, e mudaram a maneira de encarar seu Carlos, havia muita discussão com os filhos. Alberto saiu de casa e foi morar sozinho. Paulo e Mariana não paravam mais em casa, não tinham mais ambiente, logo pensavam em se casar.

A mãe Adi, mesmo com tudo isso, pedia para os filhos respeitar o pai, numa conversa com Alberto, tocou o seu coração e no dia seguinte que era sábado, Alberto deu um presente a seu pai, ao abrir viu que era um barbeador elétrico, seu pai agradeceu e se abraçaram.
Mas naquela tarde, Alberto voltando de um jogo de futebol de rua, entrava na farmácia do japonês e antes que colocasse o pé porta adentro ouviu a voz de seu pai e pôs a escutar, e o que ele ouviu não foi edificante para a alma, mas doía. Seu pai falava que nem um de seus filhos prestava, que eram ladrões, malandros e o Alberto era um drogado, ele afirmou que não tinha agrado na família.

Alberto acabou de entrar, pediu um remédio pra dor de cabeça, bateu nas costas de seu pai e foi embora.

Ao chegar em casa não contou nada, parecia de bom humor, ajudou sua mãe, passou massa nos buracos do chão da casa, fazia isto sempre que visitava sua mãe, pois tinha pena da maneira como era tratada. A mãe sentou no sofá, e sua tristeza sentida pelos meus panos, minhas espumas e tentei ser o mais consolador possível, aquela água, que saia de seus olhos disfarçadamente, rolou até mim, e a tristeza também me dominou.

No dia seguinte, domingo de sol, a mãe Adi passava o café e conversava cordialmente com seu Carlos, ele muito distante e frio. Alberto levantou, foi ao banheiro e sentou-se a mesa, e naquela conversa que eu ouvia da sala, houve um silêncio seguido de um estouro e gritos, era Alberto que jogara o copo de leite com café contra a parede, dizia que seu pai era falso, que ouvira o que ele falara na farmácia. Alberto saiu, Paulo e Mariana acordaram assustados.

Cada final de semana, seu Carlos discutia com um filho diferente e a cada discussão expulsava os filhos de casa. Dona Adi, materna protegia seus filhos, o que fazia seu Carlos alimentar mais o seu desprezo por ela.

Quantas vezes seus filhos menores foram à feira e seu pai falava para os clientes quando indagado se eram seus filhos, sua resposta costumeira: são meninos de rua que eu ajudo. A humilhação repetitiva afastou-o da admiração de seus filhos.

Numa bela manhã de fim de maio, Carlos o pai sai como se estivesse indo para a feira, às dez horas voltou numa perua Kombi, pegou suas roupas, seus pertences e deu adeus. Adi em silêncio assistiu tudo. Seu Carlos foi viver com uma mulher uns vinte anos mais nova.

As nuvens da tempestade estavam bem negras, e para piorar o temporal, Paulo, que na época tinha vinte e nove anos, foi passear na praia de Santos, e sem explicação morreu afogado.

Eu queria por aquela família em meu colo, ampara-los, dizer que tudo ia melhorar.

Dona Adi, parecia uma criança ao chorar por seu pranteado filho, suas amigas e irmãs carnais juntamente com os dois filhos restantes não foram capazes de abrandar o seu coração.

Percebi que um sofá tem muitos menos problemas do que os humanos e que damos muito apoio sem palavras.


A MUDANÇA



Logo precisaram mudar de casa, e os filhos me pegaram com a dificuldade que os jovens tem com coisas pesadas, colocaram-me em cima de um caminhão descoberto, não se deslocou muito, a nova casa era muito maior, tinha dois quartos, sala, cozinha, banheiro e lavanderia. Fiquei naquela sala maior que a anterior, de tacos, a cozinha azulejada, e os quartos também de tacos.

A casa era maior, mas a família cada vez mais diminuía, Alberto se juntou com uma mulher e em menos de um ano tinha uma filha. Não viviam bem, sempre que visitavam dona Adi percebia a discussão do jovem casal. Mariana também se casou, seu marido muito respeitador, trabalhador, construiu uma casa grande perto de dona Adi e a convidou para morar juntos.

Adi queria muito deixar de pagar aluguel, mas sabia que viver junto com sua filha e genro não seria a melhor coisa a fazer, visto que era uma mulher independente, agora mais velha, mas podia se sustentar e viver da maneira como desejava. No passado tinha se inscrito no programa de casas populares, e, naquele ano saiu sua nova residência, embora fosse do outro lado da cidade de São Paulo.

A nova mudança se deu com a ajuda de Alberto, que veio no caminhão da empresa que trabalhava. Eu novamente estava entrando no caminhão junto com a velha estante que por estar muito velha, sentia que estava chegando há sua hora, também o televisor, a geladeira, o fogão, a cama e os beliches, estavam empolgados com uma nova perspectiva, com uma mudança no pleno sentido da palavra.

Demorou mais ou menos duas horas para atravessarmos a cidade, o prédio era menor que a casa de tacos, mas inspirava esperança e vida nova! A família parecia ter se recuperado dos grandes golpes, mas como é a vida, dos animados e inanimados, convivemos com as perdas e a morte. É, mais um filho de dona Adi faleceu, sim, era Alberto que teve um ataque cardíaco. De novo a tristeza tomou conta de nós. Mas desta vez a recuperação foi mais rápida. A família freqüentava uma reunião que estudava a Bíblia e, sabia o futuro das pessoas que morreram, onde estavam e quando poderiam retornar através da ressurreição, os textos que citavam e que gravei eram Eclesiastes 9:5,10, João 5:28,29 e Apocalipse 21:3,4, são esclarecedores.

O bairro para onde mudou era quase que deserto, estavam entregando aos poucos as chaves; a família de Adi entrou com os móveis, a velha estante reparadeira fez sua observação que não havia gostado da mudança, que o bairro era pobre, deserto. O televisor de tanta tristeza pifou, nunca mais ouvi sua gagueira. A geladeira não deu sua opinião, pois para ela tanto faz como tanto fez. A cama de casal estava preocupada com seu destino, será que sua dona continuaria com ela, pois o apartamento era um aperto, embora com dois quartos, eram pequenos, a cozinha e a sala não tinha separação, e o banheiro um aperto.

Os beliches tranqüilos roncavam, talvez se apaziguavam devido à necessidade, pois falávamos de dois quartos!
A lufa-lufa do cotidiano, casa, trabalho e religião nos separaram um pouco, mas gostava que sentasse para conversar, preparar suas reuniões, receber amigos.


TEMPO DE BONANÇA


Depois do sobe e desce, das idas e vindas que todos passam, chegou a hora de viver melhor, e é o que aconteceu com dona Adi. Parecia que tudo estava entrando nos eixos, uma vida mais sossegada, mais significativa. Dona Adi tinha mudado para um emprego melhor, agora era funcionária pública há mais de dez anos. Fez muitas mudanças no apartamento com respeito aos móveis. Lembram do televisor que pifou, chorei muito, embora gago era culto e fez muita falta pra mim, pois compartilhávamos a mesma sala. Dona Adi comprou um televisor moderno com controle remoto, culto como o outro, mas por ser jovem faltava-lhe experiência. A velha estante foi vendida para móveis usados, mal sabia dona Adi que era uma relíquia, e seu novo dono também não lhe deu valor; sua despedida foi comovente, disse com voz rouca da velhice: não se iluda sofá, você está aqui há uns vinte e cinco anos, você um dia será substituído.

Disse que minha preocupação era com o bem estar dela e que Deus a protegesse. Foi nossa última conversa. Uma estante linda, cheia de divisões, vidros, muito bem trabalhada chegou na sala. A sala cada dia que passava ficava mais bonita. Ali na cozinha a geladeira parou de funcionar, eu gritei para que continuasse, ela friamente disse que havia chegado a sua hora, deu adeus. Também veio uma substituta, uma geladeira marrom linda, pomposa, sentimentos a flor da pele. A cama de casal como era de se esperar foi vendida, eu sei que ficou no mesmo bairro, mas nunca mais nos encontramos. Percebi que tudo combinava, a geladeira, a mesa, a estante, o televisor, a cama de solteiro de dona Adi, os beliches no quarto, a única coisa fora de moda era eu. Desesperei, os móveis novos, não deram importância as minhas preocupações, logo descobri o porquê, era uma outra geração de móveis e eletrodomésticos, sofisticados, mentalidade totalmente diferente dos outros móveis que convivi. Claro que me adaptei, mas não perdi minha individualidade, queria novos amigos, a solidão não é uma coisa desejável nem pra um sofá.

No mais a casa estava bonita, com plantas, móveis decorando com bom gosto os espaços pequenos devido à modernidade das grandes metrópoles. A bonança era perceptível, embora problemas sobrevinham, como financeiros, doenças que se chegam quer com a idade quer com a imperfeição, estas não foram capazes de parar a alegria dona Adi. Mariana que já tinha filhos, vez por outra visitava dona Adi, trazia sua prole para a matriarca com sua inteligência e vivencia pudesse mima-los quando preciso, corrigir se necessário e amá-los sempre. Que ocasiões felizes!

Emocionante, eu envelhecia, mas continuava servindo para acomodar dona Adi e seus convidados.

A geladeira azul que no passado vivia só com água, hoje a marrom cheia de variedades. Embaixo de meus pés colocaram um tapete grande e bonito que era limpo com aspirador de pó, eu também sentia aquele fungador fungar sobre meu tecido e tirar as partículas de pó.

Por fim, dona Adi está aposentada, e colhe os louros de seus esforços e admiração de sua filha, genro e netos. Tem uma velhice boa e abençoada, pois nunca prejudicou ninguém, embora passasse por dissabores lutou integramente e partilhou o bem com seu próximo dando exemplo de respeito e dignidade pela vida e seu amor a Deus.


O MUNDO É REDONDO E DÁ VOLTAS


Mesmo depois de mudar para o apartamento, recebeu visitas inesperadas de seu Carlos, que dizia a Adi estar arrependido, mas quando ela fazia algumas exigências, estas que as mulheres fazem quando sabem que os homens viveram com outras mulheres. Ele não estava disposto a mudar, embora alegasse que foi estúpido por abandonar uma bela família e uma excelente esposa. Dona Adi, não querendo mais sofrer após anos de separação, continuou firme e convicta de que havia feito a coisa certa, rejeitou sua reconciliação. Anos depois seu Carlos falece, embora tinha muitos amigos, ficou privado da presença de sua esposa legítima no seu enterro. A vida é assim, se não cultivarmos amor aos que nos são preciosos, amor não teremos em horas de extrema necessidade.


MEU APRENDIZADO


Desde que me integrei à família, fui aprendendo paulatinamente coisas essenciais para convivermos da melhor maneira possível. Aconteceu muitas coisas na minha vida de móvel, muitos sentaram em mim, derramaram café, leite, suco, bolo, cerveja, uma vez o cachorro fez pipi em mim. O bom é que quando acontecia, logo vinha ou Adi ou Alberto com um pano limpar meu tecido. Embora alguns móveis e eletrodomésticos são diferentes e cada um tem uma função, aprendi que todos são importantes para o bom andamento do lar. Achava que a cor mais bonita era o verde, mas com o tempo e com boas associações, fui enxergando que existem cores mais belas do que a minha, das que não gostava passei a gostar. O televisor na sua gagueira era irritante, mas me treinou em paciência, calma, e ensinou que no mundo todo sempre vai haver um objeto, pessoa ou coisa mais inteligente, ou útil do que nós. Ninguém é dono da sabedoria e da verdade E que diferenças encontramos nas cores, devido a grandes variedades que nos cercam, e que se um é azul porque existem pessoas que o admiram, se sou verde, porque existem pessoas que preferem minha nuança, pois Deus não faz acepção de pessoas, dizia ele.

A geladeira ensinou-me a não levar tudo a ferro e fogo e nem se preocupar demais com o amanha, pois a cada dia basta o seu mau. A estante que viveu na roça, no interior, em sua simplicidade me fez simplificar minha vida, não querer ser o que não sou, ter expectativas realistas sobre mim mesmo. E o mais importante, se precisar mudar, mude, mas sempre para melhor. Como saber o que é melhor? Quando todos o enxergam como exemplo no falar, na conduta e amor é por que os passos estão certos.

O fogão falou da dignidade de servir de se doar aos outros, não há alegria maior. Ele tinha razão. A cama e os beliches sonhadores como sempre, enfatizaram no meu aprendizado que a vida sem sonhos, sem alvos é fútil. Precisamos de sonhos alcançáveis que nos proporcione mais felicidade.

Com a família aprendi que existe hora para falar e se calar, mesmo quando tudo estiver na escuridão, lute, tem pessoas que dependem de você. Aprendi isso com Dona Adi. Seu Carlos embora errante, lembro-me de suas histórias e esforço para educar os filhos, quanto a abandonar sua família, aprendi uma grande lição. Dos filhos, cada qual com seu jeito e individualidade, aprendi também. Precisamos ser espertos para não ser passado pra trás, jogar bola ou exercitar-se fisicamente faz muito bem, rir é bom demais, pintar e desenhar além de arte são uma boa terapia, que se irritar às vezes faz parte para que outros nos respeitem, estudar é uma chave para um bom futuro, devemos ser seletivos quanto ao que lemos e vemos, ser trabalhador é uma virtude e ajudou-me a ver que presto um bom trabalho para a família. Embora passassem por dramas e comédias, gostavam de viver a vida intensamente, assim como eu, e necessito desenvolver atos de bondade para me sentir completo.


ESTOU LEGAL


Hoje não sou mais útil, meu tecido perdeu o brilho, por muitas coisas que aos longos dos anos derramaram em mim, o sol e o tempo são dois agentes interessantes no processo de envelhecimento de um sofá.

Nas manhãs de inverno, o frio que pairava sobre a cidade, as férias escolares das crianças faziam achegar-se ao calor de meu tecido. Quantas vezes gostava que Adi deitasse sobre mim lendo ou cochilando, sentia me feliz.

Mas chegou o meu tempo, parece que estou repetindo a frase da velha estante, mas não estou, engraçado, dona Adi trocou quase todos os móveis, menos eu, não sei porque me deixou por ultimo, pois agora estou acabado, minha madeira apodrecida, não tenho forças para amparar as pessoas.

Aquele olhar da senhora simples e determinada me fita mais uma vez, seu olhar não era igual ao daquela ocasião que desejava me adquirir, agora era um olhar de ternura, de agradecimentos e de confidências. O Caminhão da prefeitura tirou me de perto dela, chorei, chorei, estou num lugar que cheira mal, já não tenho braços, espumas e tecido. O sofá de pano verde se despede, alegre pela gratidão de sua dona, pelas coisas que viveu, pelo que aprendeu, pelo amor forte que sinto por esta família. Tenho muito agradecer. A chuva que cai sobre mim é diferente das lágrimas de minha dona, que embora quentes, ferviam esperança. Esta chuva me adoece, enfraquece. Tudo bem estou legal!

Caro leitor, embora eu seja um sofá que tinha pano verde, vivi com toda força e amor, peço que de mais valor por aqueles que te acolhem, acariciam, esquentam e amam, pois todos temos sentimentos. E não estou falando apenas de móveis, mas principalmente das pessoas. Não deixe que esta pessoa que convive com você, que faz parte de sua família seja como eu, apenas um sofá de pano verde.

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"ESPERAREI"

Esperarei domingo; Esperarei sorrindo; Esperarei sonhando; Esperarei dormindo; Esperarei um amigo, Um abrigo, um lindo dia de sol.