Queria Dona Inácia
refrescar-se do atormentador calor
tropical, sua quimera era uma cachoeira de águas gélidas tão abundantes neste
interior paulista. Com seus quase sessenta anos, corpo volumoso, poucos fios de
cabelos enfeitam sua cabeça. Esbraveja chamando Nena, sua criada que adotara
para tal, negra, dezesseis anos, corpo admirável em polegadas; a menina parecia
um bibelô de tão delicada.
- Faça algo, ou não te importas que
esse calor me consuma?
- Claro Dona Inácia, preparei até um
refresco de acerola geladinho para refrigerar vossa alma. Responde a dócil
donzela.
- Bons tempos aqueles que eu não
precisava nem pedir, não é Nena?
- Trouxe também um pedaço de bolo de
laranja, o seu predileto!
- Dá-me cá, depois as pessoas fazem
observações grosseiras a respeito das minhas medidas, sim, você me entope de
iguarias, como resistir?
Os doze cachorros do casarão passam a
latir em direção ao portão da entrada, entrada que fica à trezentos metros da
sede.
- Tem visita Senhora!
- Ora, deve ser o padre Antônio, havia
combinado de ser generosa com a igreja por este mês.
- Engraçado, não parece ser o padre não.
Um jovem montado em seu cavalo preto nunca o viu por essas bandas. Narra à
menina fitando os olhos no mancebo.
- Chama Necésio e os capangas, e peça
que indagues do menino o motivo de sua vinda.
A negra sai apressada no sentido
contrário, na vila dos funcionários e num tom desesperador procura Sr. Necésio,
o administrador das “Três Fazendas”. Necésio, cabelos brancos, cinquentão,
viúvo, sisudo; olha o apavoramento da moça escutando-a, sobe em seu cavalo e
vai calmamente em direção ao portão.
O jovem educadamente o espera do lado
onde às sombras dos grandes Jatobás o protegem. Na cavalgada, Sr. Necésio mira
o jovem, desconcertando-se, lembra-se das mulheres e suas noitadas. O jovem tem
sua fisionomia, o que será que veio fazer por estas bandas? Será que está em
busca do paradeiro de seu pai? Endurece sua postura mais que o normal.
- Bom dia! Segue-se um exame da cabeça
aos pés.
- Bom dia! Gostaria de conversar com
Senhor Necésio, o administrador da fazenda.
- Pois não. Responde apeando de seu
cavalo. Incentivado, o jovem mulato, musculoso, cabelos negros, um e oitenta de
altura, passa a descer de seu cavalo.
- Gostaria de um emprego, sou
acostumado com a rotina e amo esta vida na fazenda.
- Eu não estou precisando de um
aprendiz e sim de um homem formado.
- Creio que o Senhor não quis me
ofender, assim sendo, coloque-me, por favor, em qualquer setor das “Três
Fazendas” e saberás minha utilidade.
Na entrada das “Três Fazendas” havia
as colunas que formavam arcos, os portões de sólidas madeiras de imbuias,
alcançavam os quase quatro metros. Quem adentrasse sairia na sede, propriedade
de Dom Criosbaldo Sotela Vene e de Dona Inácia Jordão Reis Sotela Vene; neste
percurso admiração pelo capricho da natureza com o zelo do Homem, resultando em
arbustos, gramas e flores no cenário principal, coadjuvando ao fundo uma
variedade de árvores frutíferas. Ao olhar para esquerda, avistaria o gado no
pasto, três mil cabeças que lembravam nuvens cobrindo a terra. À direita,
encantaria com o imenso lago artificial acompanhado por um laranjal, milharal e
cafezal, tudo muito distante do outro. Perceberia que os trabalhadores cultivam
e cantam. Passando a sede, o casarão, temos a vila dos trabalhadores com suas
cento e vinte casas, mulheres com crianças descendo em direção ao rio para
lavar roupas, o rio é o Potibari, que nasce na cidade de Melquisedeque, próxima
a Palestina, no grande Estado de São Paulo.
Entretanto, nos concentremos na sede, o
casarão das “Três Fazendas”, onde doze empregadas trabalham, sendo três
cozinheiras, duas lavadeiras e duas passadeiras e cinco para limpeza e
arrumação. Dona Inácia não possui governanta, pois ela mesma verifica o
trabalho interno e Senhor Necésio o trabalho externo. Há quarenta e seis
dependências no casarão: uma cozinha interna para preparação dos alimentos e
uma externa para cozinhar nos fogões a lenha; cinco salas, duas de estar, uma
para reuniões e duas de jantar; dezesseis banheiros e dezesseis quartos; quatro
dispensas e três áreas comuns para visitação. A decoração colonial se
requintava com um piano entre as duas salas de estar. Na parede que dá de
frente com as escadarias do andar superior, um quadro “Moisés Salvo das Águas”
de Nicolas-Antoine Taunay, muita reflexão. Dom Criosbaldo o havia comprado do
próprio Taunay numa de suas viagens ao Rio de Janeiro.