sexta-feira, 8 de junho de 2012

O SOFÁ DE PANO VERDE







PREFÁCIO





Caro leitor,


Este livro foi editado pensando em como a vida toma com o passar dos anos outras proporções que nós mesmos ficamos surpreendidos. Do ponto de vista de um sofá, o autor narra os problemas, sentimentos de amor, alegria e tristeza, medo e coragem, gostos e desgostos num objeto inanimado, como se fosse humano.
O mais importante é a lição que se aprende da narrativa.
Espero que goste, um abraço de


Marco Dias.




Dedico este livro a três pessoas importantes em minha vida, minha mãe dona Lucy Brandão, meu irmão caçula Renato e pra minha esposa Elizabeth.


2007.Copyright.Todos direitos reservados.






O SOFÁ DE PANO VERDE





Era década de setenta, e sentia que minha estrutura iria terminar; alguns homens, sim, destes que trabalham em fábricas, uns barbudos e outros sem barbas, uns bem humorados e outros com falta de humor, estavam me montando, aquela estrutura de madeira aos poucos ganhava espuma, e um tecido sim, um pano verde, que faz qualquer um babar de inveja.

Lá saio eu pra dentro de um caminhão junto com outros sofás, estantes, mesas de centro, de cozinha, e outros móveis, todos estávamos alegres, e nos perguntávamos, qual seria o nosso futuro, qual casa iríamos decorar, que família seríamos de auxílio.
Lembro-me como se fosse hoje, o senhor guarda-roupa falando todo pomposo de seus atributos, e como seria de ajuda para a família que o levasse. A Cristaleira, fina e requintada dizia ser de nobre estirpe e que se desculpava por não ir conosco a mesma seção, pois os móveis de sua madeira se encontravam no andar superior ao nosso. Com estas palavras vários outros móveis entraram na discussão e no meio daquela confusão, eu estava apreensivo com o meu futuro.

O caminhão parou e meu coração bateu mais forte, dois homens uniformizados tiraram-me dali, e me colocaram num amplo salão com diversos sofás, estantes e objetos de decoração para sala, de estar e jantar.

As portas se abriram e começou a entrar muitas pessoas, percebi um menino de três anos mais ou menos perguntar a sua mãe: leva o tofá, o tofá mumito.
- Não querido mamãe veio pra pagar a prestação, vamos!

Uma senhora de cabelos brancos olhava para os sofás, tinha uma expressão de desapontamento, talvez por que não cabíamos no seu bolso.

Chegou a noite, as portas se fecharam, as luzes se apagaram, entre nós sofás houve uma conversa animada, cada qual apostando quem sairia primeiro da loja.
ZZZZZZZZZZZZZZ, muitos já dormiam, fiquei em silêncio, e o barulho ia diminuindo, diminuindo...

Despertei com um barulho, eram os empregados abrindo a loja, uns conversavam sobre o que fizeram ontem, outros sobre problemas familiares e outros contavam piadas. Na frente da loja, havia vendedor que não queria perder tempo e gritava: Oferta, oferta! Só hoje, móveis e eletrodomésticos pode entrar senhora, fique a vontade jovem!

E assim passou os dias, sofás marrons, azuis, estantes e objetos passavam por mim e diziam: Seja feliz! Eu respondia seja feliz, no começo com aquela empolgação e com os dias aquela tristeza de sentir-se desprezado.

Foi aí que entrou uma jovem senhora trajando roupas humildes, mas limpas, havia sinceridade no seu olhar, o seu tom de voz decidido, o vendedor percebia eu, queria empurrar um outro sofá mais em conta, que poderia fazer em tantas vezes. Mas a jovem senhora disse resolutamente: Este é meu! Anote o endereço. O vendedor cumpriu a burocracia de uma venda e garantiu que no prazo de dois dias receberia a mercadoria escolhida.

Fiquei tão contente de conhecer minha dona, e fiquei imaginando como seria sua casa, se tinham filhos, como era seu marido, será que tem cachorro? Aqueles atrevidos!Tentei não pensar mais em assuntos desagradáveis, pois sentia meu pano umedecer com urina de cachorro. Voltei a mente pra jovem senhora sincera, e digo foi a melhor noite que vivi naquela loja.

Ao raiar do dia, já estava ansioso pra conhecer a minha família, os carregadores me ergueram, meu pano brilhava com os raios do sol, era um brilho de alegria, satisfação e utilidade. Casa, aí vou eu! Pelo caminho acho que enjoei os outros móveis de tanto falar. Desejei felicidades a todos antes de desembarcar. Olhei, tinha uma escadaria que dava pra uma casa que ficava no meio da subida. Os carregadores arfavam com meu peso ao subir as escadas, um disse pro outro: E sofá de três lugares pesado sô!

Entraram pelo portão de madeira simples, quebrado, tinha uma varanda que fazia muito calor por ser coberta por telhas de zinco. Ao entrar na casa, pequena, passamos pela cozinha de chão de cimento, entramos na sala de chão de vermelhão, e de repente, alguns meninos, uma era menina, sentaram em mim. Eram franzinos, não pesavam muito. Eles expressavam surpresos: Olha! Puxa! Olha! E riam de contentamento.

Eles levantaram foram passar pano no chão, um aproveitou para se esticar em meu pano verde, e disse: Gostoso dormir aqui! Será que a mãe deixa? Falava pro outro.

Vi o que não queria ter visto, um cachorro grande vindo em minha direção, cheirando, logo pedi a Deus que colocasse ele pra fora. Minhas orações foram atendidas, por que um dos garotos colocou o cachorro pra fora, com o mesmo receio meu.

O tempo ia passando, e lá estava eu conversando com a velha estante fora de moda, ela sabia tudo sobre a família, quantos eram, quando e onde nasceram, do que viviam, fui me encantando por aquela família. A velha estante me contou também, os nomes de todos. Falou sobre onde foi fabricada, na cidade de Lion, França, e comovida dissera que há quase um século e meio serve seus donos. Dizia donos, pois, passara por casarões dos senhores do café, fazendas de pessoas importantes, passara de geração a geração, até que um dos herdeiros não conseguiu avaliar seu verdadeiro valor.

O interessante que a conversa não era uma queixa e sim, experiência de quem viveu por assim dizer, épocas dificultosas e favoráveis. Ela amava demais esta família, embora não tinham o requinte das outras, mas tinham uma coisa muito importante, prezavam o que tinham. Os móveis da casa, além da estante, eram o televisor antigo que tinha problema de gagueira, sempre que passava um programa ele começava a falar, e quando esquentava a gagueira era certa.

Muito simples, amigo, prestativo este televisor, conhecia assuntos diversos. Ele me contou o desenrolar da Primeira e Segunda Guerra Mundial, sobre a guerra do Vietnã, falou sobre costumes e culturas de diversos países, palestrou sobre política nacional e internacional, sobre a morte de Elis, do Iatola, da esperança de um Mundo melhor, do Apartheid, da queda do muro de Berlim, o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviética e dos lugares mais maravilhosos do mundo! Parecia mágica, era só ligar o fio dele na parede e a transformação, antes tímido passava por uma eloqüência esplendida, até seu aquecimento, porque daí pra frente já sabemos o que ocorria.

Também tinha uma velha geladeira azul, barulhenta por sinal, que sempre que o televisor gaguejava dizia: A ira não faz bem, olha o meu exemplo, não esquenta! Ela era muito legal, vivia mais no seu mundo, mas apaziguava as encrencas como ninguém, mas como nada é perfeito, ela era bem fria, não ligava muito pra família ou amigos.

O televisor chamou-me em particular e disse pra não ligar pra ela, pois achava que viera de algum campo de concentração.

O fogão vermelho era cheio de gás e sonhos, dizia que qualquer dia apareceria no televisor, famoso por cozinhar, fritar e assar de tudo, quem sabe naquele programa da época, Tv Mulher se não estou enganado. Não posso discordar de que o cheiro que emanava dele era pra sofá verde amarelar de tanta fome.

No quarto tinha uma cama e dois beliches, conversavam pouco, pois amavam dormir, suas raras conversas tinha que ver com histórias para dormir, como dormir faz bem, insônia e afins. Sempre que acabava o papo eu não percebia, pois, já pegava no sono.

A mãe, aquela mulher que admirei desde o primeiro contato, se chamava Adi, seu esposo chamava-se Carlos, seus três filhos, chamavam-se: Paulo, Alberto e Mariana. Cada um tinha uma personalidade única, o esperto era Paulo, o jogador de futebol e atleta era Alberto, e Mariana era doce e intelectual.

Fui me acostumando com a rotina da família, a mãe, levantava cedo e passava o café enquanto se arrumava para ir ao trabalho nas casas de famílias, pois era diarista. O seu Carlos estava encostado pelo seguro social, devido um acidente que lhe ocorreu no trabalho, e para continuar sobrevivendo, tinha uma banca de frutas na feira, ganhava pouco, mas fazer o quê, dizia aquele senhor de meia idade.

Quanto aos filhos, Paulo e Alberto com quatorze e treze anos de idade respectivamente, trabalhavam num banco na função de contínuos. Mariana, dez anos estudava e tinha prazer em arrumar a casa e cozinhar para ganhar os elogios de todos.

O que eu achava mais interessante nesta família era sua harmonia, união, claro como toda família tinham os seus problemas, mas parecia que a fé que tinham os ajudava a vencer, quer passasse carência de alimentos, financeira, enfim, continuavam unidos.

A noite quando todos estavam em casa, eu prestava atenção, a conversa era animada, ou acalorada dependendo do ânimo dos pais. Muitas noites, quando todos estavam em casa, o silêncio dominava por causa da tv. Mas dona Adi, pessoa simples, mas de uma inteligência que só as mães entendem, aos poucos fazia toda família se envolver numa conversa em que ninguém dominava, ou brincadeira em família, e sim era gostoso ver cada um falar do que aconteceu na escola, no trabalho, problemas com puberdade, e assim conseguiam perceber o que afetava os filhos, perceber suas reais necessidades. Quando todos iam para o quarto, ela e seu marido ficavam na sala, e aí meus ouvidos ficavam atentos a que soluções chegavam, o que cada um dos pais se comprometiam a fazer no dia seguinte para ajudar os filhos a resolverem seus problemas. Era notável escutar no escuro lá do quarto as histórias que o pai inventava para os filhos dormir. Às vezes eles demoravam pra dormir, pois achavam legal rir de algumas histórias engraçadas que o patriarca protagonizava.

Todo dia, eu e a estante velha dizíamos, agora é hora de levantarem, disso, daquilo, blá, blá e blá. Já conhecia rotina da casa.

Vi os filhos crescerem, suas primeiras namoradas, vi a preocupação da mãe, com uma atitude de esclarecimento mostrava para o filho apaixonado a realidade, responsabilidade e o que ele deveria fazer se realmente queria levar a sério. Claro que namoros viam e iam, alguns namoros eu podia perceber a agitação dos jovens, sentados em mim, disparava o coração de Paulo, às vezes as situações eram engraçadas, pois as jovens estavam sobre os olhos dos pais. E assim acontecia, Paulo, Alberto, e depois Mariana, pareciam que agora o namoro ia, aqueles sussurros nos ouvidos das amadas, durava pouco tempo, tempo de descobrirem que as pretendentes estavam se encontrando com outros. Aí, sozinhos na sala, um de cada vez é claro, faziam confidências de que nunca mais iam deixar se enganar, que o amor verdadeiro não existe, que as moças não valiam a pena. Logo lembrei da loja, e como me sentia triste, desapontado quando outros móveis iam para seus lares e eu ficava, sentia-me desprezado. Incrível, consegui usar de empatia, e parece que quando eu me colocava no lugar deles, eles se sentiam melhor, pois logo cochilavam em meu colo macio. Quantas vezes Mariana, conversando com a mãe deitava em mim, eu, assistia como um aprendiz faz, a mãe aconselhava, dizia não ter idade para namoros e o que realmente os garotos se interessavam. Mariana apreciava seus conselhos, era uma garota muito educada e obediente.

Aconteceu certa vez, um fato curioso, Paulo o primogênito, começou namorar uma moça, e na inexperiência juvenil, engravidou a mocinha. Paulo não queria o filho, não queria se casar com a moça achava cedo demais. Ficou perturbado com sua atitude. Dona Adi conversou e o aconselhou. Ele por conta própria, decidiu sumir, e ai começou a ira do pai da jovem. Ele foi até a casa da escadaria, e em sua cintura tinha uma arma de fogo, pelo menos pra quem via de longe como era o meu caso. Chamou por Paulo, Alberto e Mariana perceberam a arma que o homem carregava, nisto Dona Adi também percebeu, sutilmente, fez com que os filhos pedissem ajuda na vizinha, ela não sabia o que poderia acontecer. Disse ao pai da moça que Paulo não se encontrava, interrompida pelos seus gritos, dona Adi foi até o banheiro onde seu Carlos tomava banho e o avisou. Acredito que seu Carlos não entendeu a gravidade da situação e depois de uns quinze a vinte minutos saiu do banheiro. O senhor, irado, cuspia fogo, sacou de sua arma, e queria vingança. Neste meio tempo, os filhos conseguiram ajuda com a vizinha que rapidamente entrou em contato com a polícia. Trinta minutos cravado, desde que o pai da moça chegou, os policias cercaram a casa pelos quatro cantos, o senhor notou as sirenes, jogou o revolver longe. Os policiais naquele dito dia estavam à procura de ladrões de banco, e coitado daquele senhor, sentiu a bravura daqueles soldados, todos foram até a delegacia. Lá dona Adi descobriu que a arma era de plástico, pegou seu tamanco e quis acertar o insensato homem. A polícia deu um jeito nele, que nunca mais quis visitar a família de dona Adi. Paulo precisou aprender de seus erros que não se deve querer curtir a vida sem responsabilidades, ele não quis casar-se mais passou judicialmente a dar pensão ao seu filho. É lógico que tanto dona Adi quanto seu Carlos não se agradavam desta ação.Aos domingos, dona Adi saia cedo, voltava com os pães, leite e um jornal para que os filhos procurassem um emprego, e vencessem na vida.Mas um dia as coisas foram mudando, e a mudança foi me assustando. Eu conhecia o jeito de sentar de cada um, se estavam nervosos, calmos, animados e tristes. Claro que na grande maioria das vezes todos estavam bem, mas começou acontecer um clima tenso, uma nuvem escura começou a pairar sobre aquele lar.


TEMPO DE VENTANIA


Havia se passado uns quinze anos que estávamos juntos, o seu Carlos cidadão pacato, nascido no Paraná, começou a tratar mal sua esposa, xingava, bravejava, falava palavrões. Dona Adi, temperamento forte, passava por alto, queria conversar, e o dito marido se fechava mais e mais. Adi refletia na atitude de seu esposo, será que não gosta mais de mim? Será que engordei e não agrado mais? Será que tem outra?

Um dia aconteceu um fato diferente, dona Adi, lavava a casa, as roupas, Alberto e Mariana ajudavam a secar o chão e depois passar cera vermelha, na hora de lustrar, pegavam panos de chão, camisas velhas furadas por traças, um sentava em cima da camisa, o outro puxava, depois trocavam, o que era puxado, passava a puxar, e vice versa. Eles gostavam e se divertiam com estas coisas boas e gratuitas que a vida nos proporciona.

Bem, a casa estava limpa, o almoço embora simples, uma verdadeira delícia, com o tempero de Adi. Já passava das duas da tarde e seu Carlos chega da feira, seus filhos estão distantes dele, devido a sua rispidez e ignorância. Olhou para a mesa, ordenou a sua mulher que colocasse seu prato. Dona Adi respondeu que ele não era aleijado, a comida estava na mesa, era só servir. Exigiu em alta voz, sua esposa colocou sua refeição, deu pra ele, neste mesmo instante ele pegou o prato e jogou no chão, xingando que não era cachorro pra comer aquela lavagem. A tempestade tinha piorado, nos anos à frente, o respeito e o amor foi dando lugar a outros sentimentos que eu não gostava, como ódio, amargura e desinteresse. No decorrer deste tempo, os filhos cresciam, e mudaram a maneira de encarar seu Carlos, havia muita discussão com os filhos. Alberto saiu de casa e foi morar sozinho. Paulo e Mariana não paravam mais em casa, não tinham mais ambiente, logo pensavam em se casar.

A mãe Adi, mesmo com tudo isso, pedia para os filhos respeitar o pai, numa conversa com Alberto, tocou o seu coração e no dia seguinte que era sábado, Alberto deu um presente a seu pai, ao abrir viu que era um barbeador elétrico, seu pai agradeceu e se abraçaram.
Mas naquela tarde, Alberto voltando de um jogo de futebol de rua, entrava na farmácia do japonês e antes que colocasse o pé porta adentro ouviu a voz de seu pai e pôs a escutar, e o que ele ouviu não foi edificante para a alma, mas doía. Seu pai falava que nem um de seus filhos prestava, que eram ladrões, malandros e o Alberto era um drogado, ele afirmou que não tinha agrado na família.

Alberto acabou de entrar, pediu um remédio pra dor de cabeça, bateu nas costas de seu pai e foi embora.

Ao chegar em casa não contou nada, parecia de bom humor, ajudou sua mãe, passou massa nos buracos do chão da casa, fazia isto sempre que visitava sua mãe, pois tinha pena da maneira como era tratada. A mãe sentou no sofá, e sua tristeza sentida pelos meus panos, minhas espumas e tentei ser o mais consolador possível, aquela água, que saia de seus olhos disfarçadamente, rolou até mim, e a tristeza também me dominou.

No dia seguinte, domingo de sol, a mãe Adi passava o café e conversava cordialmente com seu Carlos, ele muito distante e frio. Alberto levantou, foi ao banheiro e sentou-se a mesa, e naquela conversa que eu ouvia da sala, houve um silêncio seguido de um estouro e gritos, era Alberto que jogara o copo de leite com café contra a parede, dizia que seu pai era falso, que ouvira o que ele falara na farmácia. Alberto saiu, Paulo e Mariana acordaram assustados.

Cada final de semana, seu Carlos discutia com um filho diferente e a cada discussão expulsava os filhos de casa. Dona Adi, materna protegia seus filhos, o que fazia seu Carlos alimentar mais o seu desprezo por ela.

Quantas vezes seus filhos menores foram à feira e seu pai falava para os clientes quando indagado se eram seus filhos, sua resposta costumeira: são meninos de rua que eu ajudo. A humilhação repetitiva afastou-o da admiração de seus filhos.

Numa bela manhã de fim de maio, Carlos o pai sai como se estivesse indo para a feira, às dez horas voltou numa perua Kombi, pegou suas roupas, seus pertences e deu adeus. Adi em silêncio assistiu tudo. Seu Carlos foi viver com uma mulher uns vinte anos mais nova.

As nuvens da tempestade estavam bem negras, e para piorar o temporal, Paulo, que na época tinha vinte e nove anos, foi passear na praia de Santos, e sem explicação morreu afogado.

Eu queria por aquela família em meu colo, ampara-los, dizer que tudo ia melhorar.

Dona Adi, parecia uma criança ao chorar por seu pranteado filho, suas amigas e irmãs carnais juntamente com os dois filhos restantes não foram capazes de abrandar o seu coração.

Percebi que um sofá tem muitos menos problemas do que os humanos e que damos muito apoio sem palavras.


A MUDANÇA



Logo precisaram mudar de casa, e os filhos me pegaram com a dificuldade que os jovens tem com coisas pesadas, colocaram-me em cima de um caminhão descoberto, não se deslocou muito, a nova casa era muito maior, tinha dois quartos, sala, cozinha, banheiro e lavanderia. Fiquei naquela sala maior que a anterior, de tacos, a cozinha azulejada, e os quartos também de tacos.

A casa era maior, mas a família cada vez mais diminuía, Alberto se juntou com uma mulher e em menos de um ano tinha uma filha. Não viviam bem, sempre que visitavam dona Adi percebia a discussão do jovem casal. Mariana também se casou, seu marido muito respeitador, trabalhador, construiu uma casa grande perto de dona Adi e a convidou para morar juntos.

Adi queria muito deixar de pagar aluguel, mas sabia que viver junto com sua filha e genro não seria a melhor coisa a fazer, visto que era uma mulher independente, agora mais velha, mas podia se sustentar e viver da maneira como desejava. No passado tinha se inscrito no programa de casas populares, e, naquele ano saiu sua nova residência, embora fosse do outro lado da cidade de São Paulo.

A nova mudança se deu com a ajuda de Alberto, que veio no caminhão da empresa que trabalhava. Eu novamente estava entrando no caminhão junto com a velha estante que por estar muito velha, sentia que estava chegando há sua hora, também o televisor, a geladeira, o fogão, a cama e os beliches, estavam empolgados com uma nova perspectiva, com uma mudança no pleno sentido da palavra.

Demorou mais ou menos duas horas para atravessarmos a cidade, o prédio era menor que a casa de tacos, mas inspirava esperança e vida nova! A família parecia ter se recuperado dos grandes golpes, mas como é a vida, dos animados e inanimados, convivemos com as perdas e a morte. É, mais um filho de dona Adi faleceu, sim, era Alberto que teve um ataque cardíaco. De novo a tristeza tomou conta de nós. Mas desta vez a recuperação foi mais rápida. A família freqüentava uma reunião que estudava a Bíblia e, sabia o futuro das pessoas que morreram, onde estavam e quando poderiam retornar através da ressurreição, os textos que citavam e que gravei eram Eclesiastes 9:5,10, João 5:28,29 e Apocalipse 21:3,4, são esclarecedores.

O bairro para onde mudou era quase que deserto, estavam entregando aos poucos as chaves; a família de Adi entrou com os móveis, a velha estante reparadeira fez sua observação que não havia gostado da mudança, que o bairro era pobre, deserto. O televisor de tanta tristeza pifou, nunca mais ouvi sua gagueira. A geladeira não deu sua opinião, pois para ela tanto faz como tanto fez. A cama de casal estava preocupada com seu destino, será que sua dona continuaria com ela, pois o apartamento era um aperto, embora com dois quartos, eram pequenos, a cozinha e a sala não tinha separação, e o banheiro um aperto.

Os beliches tranqüilos roncavam, talvez se apaziguavam devido à necessidade, pois falávamos de dois quartos!
A lufa-lufa do cotidiano, casa, trabalho e religião nos separaram um pouco, mas gostava que sentasse para conversar, preparar suas reuniões, receber amigos.


TEMPO DE BONANÇA


Depois do sobe e desce, das idas e vindas que todos passam, chegou a hora de viver melhor, e é o que aconteceu com dona Adi. Parecia que tudo estava entrando nos eixos, uma vida mais sossegada, mais significativa. Dona Adi tinha mudado para um emprego melhor, agora era funcionária pública há mais de dez anos. Fez muitas mudanças no apartamento com respeito aos móveis. Lembram do televisor que pifou, chorei muito, embora gago era culto e fez muita falta pra mim, pois compartilhávamos a mesma sala. Dona Adi comprou um televisor moderno com controle remoto, culto como o outro, mas por ser jovem faltava-lhe experiência. A velha estante foi vendida para móveis usados, mal sabia dona Adi que era uma relíquia, e seu novo dono também não lhe deu valor; sua despedida foi comovente, disse com voz rouca da velhice: não se iluda sofá, você está aqui há uns vinte e cinco anos, você um dia será substituído.

Disse que minha preocupação era com o bem estar dela e que Deus a protegesse. Foi nossa última conversa. Uma estante linda, cheia de divisões, vidros, muito bem trabalhada chegou na sala. A sala cada dia que passava ficava mais bonita. Ali na cozinha a geladeira parou de funcionar, eu gritei para que continuasse, ela friamente disse que havia chegado a sua hora, deu adeus. Também veio uma substituta, uma geladeira marrom linda, pomposa, sentimentos a flor da pele. A cama de casal como era de se esperar foi vendida, eu sei que ficou no mesmo bairro, mas nunca mais nos encontramos. Percebi que tudo combinava, a geladeira, a mesa, a estante, o televisor, a cama de solteiro de dona Adi, os beliches no quarto, a única coisa fora de moda era eu. Desesperei, os móveis novos, não deram importância as minhas preocupações, logo descobri o porquê, era uma outra geração de móveis e eletrodomésticos, sofisticados, mentalidade totalmente diferente dos outros móveis que convivi. Claro que me adaptei, mas não perdi minha individualidade, queria novos amigos, a solidão não é uma coisa desejável nem pra um sofá.

No mais a casa estava bonita, com plantas, móveis decorando com bom gosto os espaços pequenos devido à modernidade das grandes metrópoles. A bonança era perceptível, embora problemas sobrevinham, como financeiros, doenças que se chegam quer com a idade quer com a imperfeição, estas não foram capazes de parar a alegria dona Adi. Mariana que já tinha filhos, vez por outra visitava dona Adi, trazia sua prole para a matriarca com sua inteligência e vivencia pudesse mima-los quando preciso, corrigir se necessário e amá-los sempre. Que ocasiões felizes!

Emocionante, eu envelhecia, mas continuava servindo para acomodar dona Adi e seus convidados.

A geladeira azul que no passado vivia só com água, hoje a marrom cheia de variedades. Embaixo de meus pés colocaram um tapete grande e bonito que era limpo com aspirador de pó, eu também sentia aquele fungador fungar sobre meu tecido e tirar as partículas de pó.

Por fim, dona Adi está aposentada, e colhe os louros de seus esforços e admiração de sua filha, genro e netos. Tem uma velhice boa e abençoada, pois nunca prejudicou ninguém, embora passasse por dissabores lutou integramente e partilhou o bem com seu próximo dando exemplo de respeito e dignidade pela vida e seu amor a Deus.


O MUNDO É REDONDO E DÁ VOLTAS


Mesmo depois de mudar para o apartamento, recebeu visitas inesperadas de seu Carlos, que dizia a Adi estar arrependido, mas quando ela fazia algumas exigências, estas que as mulheres fazem quando sabem que os homens viveram com outras mulheres. Ele não estava disposto a mudar, embora alegasse que foi estúpido por abandonar uma bela família e uma excelente esposa. Dona Adi, não querendo mais sofrer após anos de separação, continuou firme e convicta de que havia feito a coisa certa, rejeitou sua reconciliação. Anos depois seu Carlos falece, embora tinha muitos amigos, ficou privado da presença de sua esposa legítima no seu enterro. A vida é assim, se não cultivarmos amor aos que nos são preciosos, amor não teremos em horas de extrema necessidade.


MEU APRENDIZADO


Desde que me integrei à família, fui aprendendo paulatinamente coisas essenciais para convivermos da melhor maneira possível. Aconteceu muitas coisas na minha vida de móvel, muitos sentaram em mim, derramaram café, leite, suco, bolo, cerveja, uma vez o cachorro fez pipi em mim. O bom é que quando acontecia, logo vinha ou Adi ou Alberto com um pano limpar meu tecido. Embora alguns móveis e eletrodomésticos são diferentes e cada um tem uma função, aprendi que todos são importantes para o bom andamento do lar. Achava que a cor mais bonita era o verde, mas com o tempo e com boas associações, fui enxergando que existem cores mais belas do que a minha, das que não gostava passei a gostar. O televisor na sua gagueira era irritante, mas me treinou em paciência, calma, e ensinou que no mundo todo sempre vai haver um objeto, pessoa ou coisa mais inteligente, ou útil do que nós. Ninguém é dono da sabedoria e da verdade E que diferenças encontramos nas cores, devido a grandes variedades que nos cercam, e que se um é azul porque existem pessoas que o admiram, se sou verde, porque existem pessoas que preferem minha nuança, pois Deus não faz acepção de pessoas, dizia ele.

A geladeira ensinou-me a não levar tudo a ferro e fogo e nem se preocupar demais com o amanha, pois a cada dia basta o seu mau. A estante que viveu na roça, no interior, em sua simplicidade me fez simplificar minha vida, não querer ser o que não sou, ter expectativas realistas sobre mim mesmo. E o mais importante, se precisar mudar, mude, mas sempre para melhor. Como saber o que é melhor? Quando todos o enxergam como exemplo no falar, na conduta e amor é por que os passos estão certos.

O fogão falou da dignidade de servir de se doar aos outros, não há alegria maior. Ele tinha razão. A cama e os beliches sonhadores como sempre, enfatizaram no meu aprendizado que a vida sem sonhos, sem alvos é fútil. Precisamos de sonhos alcançáveis que nos proporcione mais felicidade.

Com a família aprendi que existe hora para falar e se calar, mesmo quando tudo estiver na escuridão, lute, tem pessoas que dependem de você. Aprendi isso com Dona Adi. Seu Carlos embora errante, lembro-me de suas histórias e esforço para educar os filhos, quanto a abandonar sua família, aprendi uma grande lição. Dos filhos, cada qual com seu jeito e individualidade, aprendi também. Precisamos ser espertos para não ser passado pra trás, jogar bola ou exercitar-se fisicamente faz muito bem, rir é bom demais, pintar e desenhar além de arte são uma boa terapia, que se irritar às vezes faz parte para que outros nos respeitem, estudar é uma chave para um bom futuro, devemos ser seletivos quanto ao que lemos e vemos, ser trabalhador é uma virtude e ajudou-me a ver que presto um bom trabalho para a família. Embora passassem por dramas e comédias, gostavam de viver a vida intensamente, assim como eu, e necessito desenvolver atos de bondade para me sentir completo.


ESTOU LEGAL


Hoje não sou mais útil, meu tecido perdeu o brilho, por muitas coisas que aos longos dos anos derramaram em mim, o sol e o tempo são dois agentes interessantes no processo de envelhecimento de um sofá.

Nas manhãs de inverno, o frio que pairava sobre a cidade, as férias escolares das crianças faziam achegar-se ao calor de meu tecido. Quantas vezes gostava que Adi deitasse sobre mim lendo ou cochilando, sentia me feliz.

Mas chegou o meu tempo, parece que estou repetindo a frase da velha estante, mas não estou, engraçado, dona Adi trocou quase todos os móveis, menos eu, não sei porque me deixou por ultimo, pois agora estou acabado, minha madeira apodrecida, não tenho forças para amparar as pessoas.

Aquele olhar da senhora simples e determinada me fita mais uma vez, seu olhar não era igual ao daquela ocasião que desejava me adquirir, agora era um olhar de ternura, de agradecimentos e de confidências. O Caminhão da prefeitura tirou me de perto dela, chorei, chorei, estou num lugar que cheira mal, já não tenho braços, espumas e tecido. O sofá de pano verde se despede, alegre pela gratidão de sua dona, pelas coisas que viveu, pelo que aprendeu, pelo amor forte que sinto por esta família. Tenho muito agradecer. A chuva que cai sobre mim é diferente das lágrimas de minha dona, que embora quentes, ferviam esperança. Esta chuva me adoece, enfraquece. Tudo bem estou legal!

Caro leitor, embora eu seja um sofá que tinha pano verde, vivi com toda força e amor, peço que de mais valor por aqueles que te acolhem, acariciam, esquentam e amam, pois todos temos sentimentos. E não estou falando apenas de móveis, mas principalmente das pessoas. Não deixe que esta pessoa que convive com você, que faz parte de sua família seja como eu, apenas um sofá de pano verde.

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"ESPERAREI"

Esperarei domingo; Esperarei sorrindo; Esperarei sonhando; Esperarei dormindo; Esperarei um amigo, Um abrigo, um lindo dia de sol.