terça-feira, 1 de maio de 2012

Coisas do Coração

Bem alto os olhos de Dona Miloca, assim conhecida por todos, parece ver além da neblina, muito além da poluição. O décimo quarto andar daquele prédio, no coração da metrópole cosmopolita, a colocava numa posição privilegiada. Mas seu olhar não fazia caso, a levava pra quando menina no interior. Parecia sentir o cheiro do café que a mamãe fazia, com suas mãos calejadas pelo ofício. Ofício comum da região, o de boia fria. Incomumente, Dona Miloca levantou às quatro da madrugada, as lembranças foram mais fortes que o sono, como se fosse possível sonhar, aos oitenta e dois anos de idade, você vive ou leva seus sonhos para a terra.


Lembrar do rosto da figura amada, generosa provisora, sisuda, abrilhantavam seus olhos. Ao passar das horas, sorrisos e risadas com lágrimas, parecia endoidecer com suas lembranças. Logo desperta, a vida na sala, sua neta adolescente na correria se apronta para ir ao colégio. Dona Miloca se poe a servir, já por anos fazia isso, quer triste ou feliz, o sentimento não podia ser levado em conta. O olhar veterano, cansado, avisava desesperadamente que precisa conversar.


Eloísa, dezesseis anos, um pouco acima do peso (que ela não saiba disto), aplicada nos estudos, de pouca fala e menos amigos. Sensível, percebe a estranheza da avó.Com empatia, segura as mãos trêmulas da guerreira, enrugadas, ásperas, olha nos fundos de seus olhos e implora: Conta, vó, conta pra mim. A idosa pensa: Meu Deus! Ela cresceu e age tal qual sua avó. Com a boca aberta ensaiando falar, as duas jaboticabas solícitas pacificaram-se e a nostalgia começou a ser ouvida.


Eloísa promete que está pro que der e vier. Abraçam-se e gargalhadas e beijos parecem sincronizados.Aprontam-se rumo ao interior, escolhem um feriado conveniente em que a extensão da família, filha, genro e neta, apoiam loucamente Dona Miloca. No trajeto de ida pra cidade dos sonhos, a anciã não se cansava de falar de particularidades da cidade, da fazenda, de como tudo era bem organizado.  Ao chegar na cidadezinha a verdade não condizia com os sonhos, a boca falava e os olhos não podiam processar como verídico. Dona Miloca, sai correndo, e mostra o que restou da fazenda que hoje divide terreno com o cemitério, a única coisa de pé é a velha mangueira. As pessoas, suas conhecidas, já não existem mais, o vilarejo abandonado, Dona Miloca, a Miló, corre abraça a mangueira e diz sussurrando coisas que a cúmplice sabia muito bem. Chorou, se alegrou, dentro dela, estava de volta ao seu paraíso.


Olhares ternos, misericordiosos, mas também alegres, se encontram, e na subjetividade do pensamento, vem uma certeza, a felicidade está onde o coração a vê.

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"ESPERAREI"

Esperarei domingo; Esperarei sorrindo; Esperarei sonhando; Esperarei dormindo; Esperarei um amigo, Um abrigo, um lindo dia de sol.